segunda-feira, 24 de maio de 2010

Minha Dissertação de Mestrado

Aqui estão postados mais os Cápitulos 01 e 02 da Minha Dissertação do Mestrado.
O Título da Mesma foi: QUANDO NEGATIVO É MELHOR QUE POSITHIVO: Um Estudo Sociológico das Experiências Identitárias de Pessoas Vivendo com HIV/AIDS em Recife.

CAPÍTULO 01
OS REGISTROS CONTEMPORÂNEOS DA AIDS

Neste capítulo enfocaremos três recortes que consideramos pertinentes discutir na questão da AIDS, e que chamamos aqui de registros contemporâneos da AIDS: o aspecto etiológico, a questão social e institucional, e a discussão comportamental da população alcançada pelo HIV/AIDS, no nosso objeto remetido para análise das identidades. Observamos que existe uma articulação entre estes três recortes que se materializa a partir do fato de que somente através de um conhecimento prévio desses fatores o público leitor terá uma visão mais abrangente do que vem a ser a epidemia da AIDS, dos modos como ela se estabeleceu no mundo, e de como as pessoas foram flagradas em suas instâncias identitárias, em suas vivências cotidianas, seus hábitos, valores, práticas, e outros tantos mais.
O capítulo se dividirá em três sessões: Os Registros etiológicos do HIV/AIDS, os Registros Sociais e Institucionais, e os Registros Simbólicos e Identitários. Na primeira sessão, definiremos sucintamente a etiologia da AIDS, explicando os termos usados pela ciência da medicina para definir a síndrome, os modos como a mesma pode ser contraída, e como podem ser evitados, os recursos científicos para diagnosticar a patologia, e os tratamentos para manter a doença sobre controle. Na Segunda sessão, faremos uma análise de alguns aspectos concernentes a instauração da AIDS no mundo, visto que a consideramos como um desdobramento da sociedade moderna tanto pelos modos como se instituiu, quanto pelas formas diversificadas de ser adquirida. Nesse parecer conceituaremos o termo instituição social buscando explicar o que caracteriza a AIDS como uma instituição social. Faremos ainda as analogias entre a AIDS e outras epidemias que assolaram o mundo, como a tuberculose e a sífilis, mostrando em que são análogas e em que se diferenciam. Na terceira sessão faremos a abordagem teórica da questão da identidade, analisando os conceitos de autores que discutem o tema ao longo dos últimos anos, buscando fazer o aporte entre a questão teórica e o nosso objeto prático.

1.1- Registros Etiológicos
A AIDS, na contemporaneidade, se configura como um grande flagrante na sociedade. Seu advento traz embutidas questões de teores diversos, denunciadoras do modus vivendis das populações, tais como: formas de organização social; construção, compreensão e representação da realidade social empírica; redimensionamento das práticas de vida, a partir das leituras e apropriações dos textos com os quais vão se deparando na sua cotidianidade e no reordenamento das vivências. Surgindo numa realidade histórica em que as grandes epidemias são dadas como erradicadas, pelo menos nos países desenvolvidos, a AIDS pôs em estado de inteira perplexidade toda a sociedade global, desdobrada nos seus diversos segmentos. A exemplo disso, poderemos citar algumas instituições sociais como o Estado, a ciência da medicina, a família, a religião, o trabalho, e outras.
No trato dessa temática da AIDS, se faz necessário apreender as particularidades inerentes ao fenômeno que o tornam diferente de outros já ocorridos, como por exemplo, as grandes epidemias que assolaram o mundo: Peste Negra, Gripe Espanhola, Tuberculose, Sífilis, dentre tantas outras. Essas particularidades, que são significativas, estão relacionadas às práticas de vida dos indivíduos no campo social e pessoal, identificadas como anormais, em alguns casos, por estarem dissociadas dos padrões éticos da moral social convencional não reconhecido como componentes do padrão “normal” de vida social. Muitas delas eram vivenciadas numa atitude que se pode cognominar de “clandestinidade”, e que só começaram a fluir a partir da AIDS.
A epidemia da AIDS é formada por um conjunto de fatores que a definem e explicam de modo bastante complexo, o que, até hoje, ainda não é compreendido por um grande contingente da população. O que pode ser justificado pelo modo como foi difícil para a própria ciência médica diagnosticar a etiologia da virose que se pressupunha, à época das primeiras investigações, serem a causadora de muitos óbitos.
As primeiras notícias sobre a AIDS chegam dos Estados Unidos em 1981, através de um órgão governamental americano: Center for Disease Control. Cidades como a Califórnia e Nova Iorque atestavam mortes de jovens e adultos do sexo masculino que tinham em comum a homossexualidade e que ocorriam de forma inusitada, combinando raros tipos de canceres com pneumonias comuns. Esses casos foram descritos como estados de imunodeficiência. Ou seja, uma diminuição dos recursos orgânicos tradicionalmente requisitados para manter o corpo imune às infecções (CAMARGO JR., 1994).
A AIDS entre nós estabeleceu um rítimo de crescimento surpreendente, mesmo quando ela desafiou a ciência médica que até hoje ainda não conseguiu descobrir a sua causa, o modo como a enfermidade iniciou. Existem muitas teorias a este respeito: dentre tantas, a de ser uma doença originada dos homossexuais masculinos nos EUA, cognominada de “peste gay” à época da sua notificação para o mundo, o que não explica a sua origem.
O percurso da epidemia da AIDS foi feito com muita rapidez, de forma que num período de dez anos, de acordo com Luc Montagnier (1995) ela já estava sendo identificada em todo o mundo, de forma que a sua diagnosticação se deu na seguinte cronologia: em 1981 a doença foi identificada; em 1983 o agente responsável por ela foi isolado pela primeira vez; em 1984 a demonstração do papel causal desse agente na Adis foi aceita por toda a comunidade científica; em 1985 surgiram os primeiros comerciais de detecção a partir da realidade de que a ciência não possuía nenhuma pista de como descobrir as origens e as causas de uma doença que se apresentava de modo tão grave. A rapidez desse avanço gerou a crença e a esperança de que a luta contra a AIDS seria “uma guerra relâmpago” (Montagnier 1995: 9), rapidamente ganha.
Nessa perspectiva uma questão se impõe: o que é a Aids? A AIDS é uma doença de origem viral. O que a torna grave é o fato de o agente infeccioso causar um retrovírus que afeta, sobretudo as células do sistema imunitário. Por ser uma doença crônica, sua evolução é sempre lento, o que faz com que passe de um estágio de contaminação, até o momento próprio, em que o paciente desenvolve os sintomas clínicos. Isso pode se passar num período de dez anos. Nesse intervalo, o paciente fica apenas como um “soropositivo.” Especialmente agora depois do uso do “coquetel,” o tempo de soropositividade é bem maior.
No afã de buscar respostas para explicar o surgimento da epidemia de AIDS, as especialidades médicas estiveram às voltas com esse questionamento feito por todo o mundo: O que é a AIDS? É uma doença? Que tipo de doença? É uma doença nova? Tal questionamento só foi respondido parcialmente.
Segundo Montagnier (idem, p. 91) a AIDS é uma doença que se apresenta em duas dimensões: é uma doença nova, mas que tem uma história antiga, e é uma doença velha, porque a partir dos estudos realizados retrospectivamente com amostras de sangue colhidas a partir dos anos 60, assim como certas descrições clínicas, indicam que o vírus da AIDS já estava presente no homem muito antes de se falar dessa doença. Em princípio, é uma doença sem sintomas clínicos próprios, visto que se manifestam através de outras doenças, tais como: tuberculose, câncer de pele, hepatite, toxoplasmose e outras tantas. Essas doenças se definiam ou por sintomatologia, ou por sua estrutura anatômica.
A epidemia da AIDS é, portanto, uma doença nova, tendo sido diagnosticada no princípio dos anos 80, pelos franceses e americanos. O termo "SIDA" ou “AIDS” é uma sigla originada do nome inglês: “Acquired Imune Deficiency Sindrome”, que se traduz por : “Síndrome da Imunodeficiência Adquirida” . Nesse parecer, a sigla AIDS, se constitui num conjunto de termos, onde cada um deles possui o seu conceito próprio dentro da ciência médica. São eles: Síndrome, Imunodeficiência e Adquirida. Sendo assim, passaremos a explicar o significado de cada um desses termos, no intento de facilitar a compreensão da síndrome AIDS. Até porque, a não compreensão desses termos configura a grande dificuldade de as pessoas apreenderem a gravidade da infecção pela AIDS.
O termo Síndrome se define como um conjunto de doenças que se manifestam em várias formas de mal-estar aparecendo juntas. No caso da AIDS, esse conjunto de doenças e sintomas pode ir de diarréias e vômitos, a gânglios inchados, Sarcoma de Karposi (que é um tipo de câncer visível em doenças epidérmicas, manchas vermelhas), e outras patologias como, doenças respiratórias, tuberculose, herpes, toxoplasmose, perda de peso acentuada e outros. Isto é, são sintomas e doenças conhecidas que, isoladamente, não seriam tão problemáticas, nem letais, como no contexto da Aids (Informativo ABIA, 1994).
O termo Imunodeficiência configura-se na falha das defesas do organismo. Uma doença que seria simples e até inofensiva numa pessoa saudável, no caso da AIDS assume um caráter complexo e de riscos significativos. O conjunto celular do corpo é definido pelos cientistas como o “sistema imunitário”. Esse sistema é uma massa de tecidos e células espalhadas por todo o corpo. A organização desse conjunto de células funciona de modo a proteger o corpo de infecções (ibid.). A AIDS é, pois, a doença do sistema imunitário, assim como a hepatite é a doença do fígado, a gastrite é a doença do estômago, etc. Portanto, com o sistema imunitário comprometido em imunodeficiência as infecções podem se tornar muito graves, mais do que realmente são. Essas infecções que se aproveitam das falhas do sistema imunitário são chamadas de infecções oportunistas.
O termo Adquirido diz respeito ao surgimento dos primeiros casos de AIDS. Segundo os patologistas, as doenças do sistema imunitário são raras. Algumas pessoas nascem com elas, outras as têm por razões desconhecidas, ou ainda, porque fizeram transplante, etc. Todavia, uma doença imunitária em caráter de epidemia, atingindo comunidades inteiras é algo inédito! A imunodeficiência é, em algum momento, “adquirida” pela pessoa (ibid.). Desse modo, a AIDS é uma doença imunológica, resultante de uma infecção por um vírus que é transmissível em circunstâncias determinadas de troca íntima de fluidos do corpo. Esta troca pode se dar através do ato sexual, da transfusão de sangue, da gestação, do nascimento e da amamentação.
Sendo respondida a questão AIDS, nos deparamos com outras: O que é um vírus? O termo vírus é usado para definir agentes transmissíveis que são invisíveis ao microscópio e passam através dos filtros de porcelana que retém as bactérias. Eles existem no interior das células de que são parasitas (Montagnier, ibid.).
Como se detecta a infecção? A Infecção é detectada através de testes laboratoriais, pelos quais o vírus é isolado com o uso de várias técnicas, que são: pesquisa de anticorpos, teste de detecção ELISA ( Enzyme-Linked Immunosorbent Assy), teste Western Blot de confirmação (idem ). Após a infecção pelo HIV decorrem várias etapas bem definidas, segundo Montagnier: a primo-infecção, a fase silenciosa e a doença clínica. (idem, 80).
O HIV é um retrovírus. O que significa que a sua forma de vida é a mais simples, arcaica e bruta. Tem curta duração de vida, morrendo rapidamente se forem mantidos por quinze minutos, mais ou menos, numa temperatura de 50o graus centígrados. Morre também ao contato de alguns minutos com vapores de formol, hipocloreto de sódio, ou outros equivalentes (Lepargneur 1987, Montagnier op. cit).
Segundo Monatagnier (p. 92), “o HIV pertence a um subgrupo particular de retrovírus que jamais são transmitidos por via hereditária, só se transferindo horizontalmente de um sujeito para outro”. Quais as formas de contaminação? As formas de contaminação se dão através de relações sexuais, uso de seringas descartáveis (consumo de drogas intravenosas), aleitamento materno, transfusão de sangue (no caso não tratado) e uso de perfuro-cortante (forma acidental). A sigla HIV significa Human Imunedeficiency Vírus (Vírus da Imunodeficiência Humana). Trata-se de um vírus que possui características muito particulares e por isso pode passar, e até muitas vezes passa despercebido por muito tempo no corpo das pessoas, sem se manifestar, ou então o faz num período de nove meses até seis anos. Infecta de modo lento, não apresentando sintomas de contágio. A transmissão ocorre através do contato íntimo de pessoas portadoras por via de relações sexuais, ou outros contatos dos líquidos orgânicos como citamos acima.
O sistema imune é o alvo do assalto do HIV. O vírus é um parasita que invade e se apropria, de preferência, da máquina genética de uma célula crítica do sistema de defesa humano: a chamada T auxiliadora, que tem como função incentivar as células que fazem os anticorpos e ajudam a controlar as infecções por fungos e bactérias. Para poder entrar na T auxiliar, o vírus HIV utiliza proteínas que ficam na superfície dessa célula, em particular a chamada CD4 (Lepargneur, 1987). Em vez de transformar as células e multiplicá-las, como no câncer, este vírus destrói o linfático T-4, que é a chave do sistema imunológico.

As formas de tratamentos para a AIDS é uma combinação de medicamentos, o chamado Coquetel que passou a ser ministrada a partir da segunda metade da década de 90. Na década anterior não havia ainda medicamentos que fossem eficazes no tratamento do HIV/AIDS. As pessoas infectadas morriam com maior freqüência, visto que os medicamentos usados para tratamento, como o AZT, não eram eficiente para combater o conjunto de doenças que a síndrome acarreta. Havia uma medicação própria para as infecções oportunistas: tuberculose, pneumonia, doenças respiratórias e outras, mas para conter os efeitos de próprio vírus HIV, não havia. Atualmente como o uso da combinação dos medicamentos: o coquetel, o quadro se reconfigurou, e o número de mortes tem diminuído consideravelmente, e as pessoas tem aumentado muito mais a sua longevidade de vida .
Dentro dessa discussão da Síndrome da Imunodeficiência Adquirida se distinguem dois estágios: um de “soropositividade” e, outro, de “doença da AIDS”. Esses são estágios diferenciados. Uma pessoa pode ser um soropositivo assintomático por muito tempo, ou então, estar com a manifestação dos sintomas da doença. É o que se considera como o estado avançado da infecção por HIV/AIDS. Essa é uma fase bem mais delicada na vida das pessoas, visto que elas se confrontam com a sua própria existência, sua vida íntima e seus referenciais sociais na coletividade, sendo esse o nosso objeto de estudo. Em fim, a AIDS é uma doença contagiosa, longa, complexa, que veio pôr em xeque, em todo o mundo, a evolução das diversas realidades sociais, as condições sanitárias das sociedades, as condições de atuação da ciência médica no que tange às pesquisas sobre epidemiologia e outros correlatos. Flagrou toda a sociedade, os indivíduos e suas expressões de vida na contemporaneidade.

1. 2- Registro Social e Institucional.

Neste recorte abordaremos alguns aspectos da AIDS, tentando contextualizá-la como um desdobramento da sociedade moderna, pelos modos como se instituiu. Assim, não temos a pretensão de abarcar toda a história social da AIDS, visto que a mesma se instaura de formas diversas em campos diversos em realidades sociais diversas e antagônicas. Mas, apenas apontaremos aspectos da sua trajetória que consideramos relevantes no sentido de possibilitar a sua compreensão no universo em que se inscreveu. Esses aspectos estão mais voltados à configuração assumida pela AIDS ao ser reconhecida como uma epidemia, e depois uma pandemia; pelo ao número de pessoas alcançadas nessas quase duas décadas de Aids. E por fim, pelos engendramentos das instituições sociais para tratamento e prevenção da epidemia.
O nosso trabalho ao se realizar não pretende, e nem poderia, obviamente, esgotar o tema aqui proposto. Todavia busca somar esforços contribuindo à que outros pesquisadores também interessados na temática possam prosseguir com a discussão. Desse modo, algumas questões ficam fora do nosso foco de discussão, visto que não as aprofundamos. São elas: as questões referentes ao uso das drogas injetáveis; questões referentes às pessoas infectadas por acidentes com perfuro-cortantes (acidentes no trabalho); discussões relacionadas às questões jurídicas; questões referentes à população infanto-juvenil; questões referentes à verticalização da AIDS, dentre outras.
Os aspectos que tomamos aqui nesse recorte são os que estão consubstanciados no nosso objeto de pesquisa: questões referentes à sexualidade, ao gênero, às organizações sociais, à vida afetiva e emocional, questões do estigma e da exclusão, dos valores culturais, ou seja, os temas que estão mais voltados para as condições existenciais do portador. Tratar teoricamente da AIDS como um fenômeno social definitivamente instituído e sancionado é significativo no nosso trabalho por alguns fatores, a saber: primeiro, porque ele se instaura e se expressa nos processos interacionais entre os indivíduos, nas suas dimensões simbólicas e imaginárias, e nas suas práticas de vida material; segundo, porque, pela sua constituição sociobiológica, ela demanda um reconhecimento institucionalizado da sua representação. A AIDS é uma instituição social.
O termo instituição é conceituado em intenções múltiplas. Ele define a instauração, a criação e a manutenção das representações do homem na sociedade, ou de outras expressões de vida humana, que ao surgirem requerem o seu reconhecimento, e a elaboração de critérios à sua efetivação nos espaços sociais. Na teoria sociológica clássica encontramos alguns autores voltados para a discussão conceitual do termo instituição, como métodos epistemológicos para interpretar e explicar a vida societal. Dentre eles tem proeminência Emile Durkheim. Este autor define o termo instituição em consonância com o seu conceito de fato social, dando a ambos as mesmas caracterizações:
“....consistem em maneiras de agir, de pensar e de sentir, exteriores aos indivíduos, dotados de um poder de coerção em virtude do qual se lhe impõem” (1985, 3), assim, constituem, pois uma espécie nova e é a ele que deve ser dada e reservada a qualificação de sociais. Esta é a qualificação que lhes convém, pois é claro que, não tendo por substrato o indivíduo, não podem possuir outro que não seja a sociedade: ou a sociedade política em sua integridade, ou qualquer um dos grupos parciais que ela encerra” ( ibid.), e “...constituem coisas que têm existência própria. O indivíduo encontra-as inteiramente formadas e não consegue impedi-las de existir...” ( Durkheim, 1978, p. XXXI).

Deste modo, a instituição de um fato social num dado segmento da sociedade, não tem autonomia, mas é relativizado, posto sob o domínio do coletivo social perdendo a sua característica individual. Para P. Berger e T. Luchman ( 1978), as instituições se definem pelas práticas de vida social dos seres humanos, traduzidas nos seus hábitos cotidianos. São as práticas rotinizadas, a cotidianidade que se institucionaliza, e essa institucionalização ocorre sempre que certas ações habituais são identificadas reciprocamente. O homem atribui significados às suas atividades de modo que cria hábitos, e ao criá-los surge à necessidade das situações por ele vivenciadas, os padrões de conduta, irem novamente se definindo, por ele considerar todas as ações humanas sujeitas ao hábito.
Assim, para estes autores (Berger e Luchman, 1978, 79-80) “As instituições têm sempre uma história da qual são produtos. É impossível compreender adequadamente uma história sem entender o processo histórico em que foi produzida.” A abordagem desses autores não está dissociada da durkheimiana, para uma definição do caráter de uma instituição social. Se Durkheim se utiliza dos termos “fato social,” e “coisa” como recursos
lingüísticos para suas explicações, Berger e Luchman, se valem do termo “hábito” e “tipificação,” para explicar subjetivamente a materialização das ações do indivíduo nos espaços sociais.
O autor C. Castoriadis (1996, 141), interpreta a questão da instituição sob uma nova visão teórica. Para esse autor, a sociedade só se institui no campo simbólico e imaginário, e somente através dessa perspectiva é que ela pode ser explicada, mesmo que ela também requeira um campo funcional para sua expressão. Assim, Castoriadis (1995, 159) conceituando o termo diz que: “Instituição é uma rede simbólica, socialmente sancionada, onde se combinam, em proporções e em relações variáveis, um componente funcional e um componente imaginário.” Castoriadis não despreza essa questão, pois para ele “... as instituições preenchem funções vitais sem as quais a existência de uma sociedade é inconcebível...”
A AIDS é um fenômeno que se estabeleceu como uma instituição social, visto que ela se caracteriza nos moldes do que conceituam os autores acima referidos: possui uma tipificação própria, quando se define nos conceitos etiológicos da ciência médica, e envolve os outros segmentos da sociedade na sua trajetória: a família, o trabalho, o lazer, a saúde, etc. Impõe normas de conduta para seu reconhecimento: na ética, na cultural, na moral, e força a redefinição do campo simbólico e imaginário dos indivíduos.
Em todos os países, o crescimento da sociedade industrial, a concentração de renda, a concentração populacional nos perímetros urbanos, as relevantes descobertas científicas da tecnociência, colocaram em questão as concepções de vida. Nesse contexto de organização social que nasceu a AIDS. Uma doença que ao surgiu, flagrou toda a sociedade em franco desenvolvimento, e trouxe consigo questões que estavam distantes das vivências sociais: doença, morte, e outras questões correlatas, que as pessoas em circunstâncias normais não cogitam, pelo menos em relação a si mesma. Assim, a AIDS surge num momento histórico em que mudanças significativas ocorriam no mundo moderno, envolvendo todo o globo. Nesse contexto histórico, identificamos a ciência médica no seu ponto máximo de realização, visto que as grandes epidemias haviam sido dadas como erradicadas, pelo menos nas sociedades desenvolvidas.
A história social da AIDS é uma história que se instaurou no mundo todo, com as mesmas características. Em todos os grupos afetados, os efeitos causados são os mesmos independendo de raça, cultura, classe social, e outras. Apesar de vivermos dentro de uma realidade de vida sociocultural, política e econômicas expressivamente desiguais, mundialmente falando, convivendo com condições diferenciadas de oportunidades de vida, com a predominância dos mais fortes sobre os mais fracos, no que se refere ao fenômeno da AIDS essa condição muda: todos se tornam iguais. De acordo com A. Camargo (1994:15):
“O homem morre, no século XX mais idoso do que nos séculos precedentes, e isto se deve principalmente às mudanças nas condições de vida. Além de melhores meios de subsistência – alojamento e alimentação – o homem aprendeu a lutar eficazmente contra as epidemias, na esteira da revolução científica, o que ocorreu a partir de 1970-80.”

Em qualquer recanto do globo, onde a AIDS tenha-se inserido a experiência de vivenciá-la, será sempre a mesma. Portanto, a AIDS deverá ser tratada sob várias óticas, com os recortes ou as correlações que se façam necessárias para uma melhor explicação da sua história social.
Ver a AIDS sempre numa visão globalizada é significativo para se pensar o futuro no âmbito do local, regional, nacional e internacional. A AIDS foi definida como o mal do século. Uma doença que põe o homem num confronto imediato com sua finitude, com a idéia da morte iminente. Diante de tal realidade o mundo imaginário funciona exacerbadamente, e as instâncias identitárias são postas em xeque, são fragilizadas, ou até mesmo fragmentadas, mesmo que seja num período de tempo provisório. Assim, a AIDS suscita os medos, as incertezas, a dor, a fé, a culpa, a esperança, pelos efeitos causados no universo imaginário das pessoas. Para L. Montagnier (1995, 187), citando M. Maffesoli diz que:
“as grandes epidemias não se caracterizam somente pelo número de doentes e de mortos. Uma doença se torna o mal do século porque cristaliza, porque simboliza mesmo, a maneira como uma sociedade vive coletivamente o medo e a morte. Nesse sentido, a doença importa tanto por seus efeitos imaginários quanto por seus efeitos reais”.

Montagnier, reforçando esse argumento, afirma:
“A AIDS não escapa a essa regra: muito depressa saíram do mundo médico para pôr em questão os próprios fundamentos da nossa sociedade. Presente em nossa vida cotidiana, ela nos obriga a refletir e, eventualmente, a modificar nossos comportamentos. Nenhuma doença na época contemporânea nos incitou tanto a pôr em questão nossa identidade, nossos valores, nosso senso de tolerância e de responsabilidade.”

Vivemos hoje, a segunda década da AIDS, e o quadro que se nos mostra não é nada animador, apesar do coquetel e das vacinas em teste. As perspectivas futuras para a AIDS na virada do século-milenar são desconcertantes. Isso porque, sendo a AIDS uma pandemia (porque é global), ela é lábil, volátil, instável e dinâmica.
Os registros geográficos da AIDS no mundo começam a ser feitos pela OMS (Organização Mundial de Saúde) com base nas notificações feitas pelos países. Isso de início não funcionou a contento. Havia incertezas quanto aos dados produzidos sobre o número de pessoas infectadas, de qual era a predominância populacional, se era de homens, ou de mulheres, se diferençava de país a pais, e outros mais. Essa dificuldade se dava por conta da falta de recursos, até metodológicos para elaboração das pesquisas, bem como pelo fato de alguns países se manterem alheios a questão, não comunicando os seus índices de contaminação, nem elaborando estratégias de atendimento à população contaminada (Mann, et al, 1994). No começo da década de 90, houve uma melhora nesse sentido, e já se podia formar um panorama da AIDS no mundo. Para tanto se contou com as notificações de quase todos os países alcançados pela AIDS. Assim, o primeiro panorama traçada de uma geografia da AIDS no mundo, contou de uma notificação de cento e sessenta e quatro países alcançados pela AIDS: A África notificou 52 países, As Américas, 45 países, a Europa, 28 países, a Ásia com 26 notificações, e a Oceania com 11 notificações.
Portanto, com uma década de AIDS no mundo, os registros geográficos e sociais de casos de notificações de ocorrências, foram fortemente marcantes, e preocupantes. Segundo Mann, et al, já referido acima, A África Subsaariana notificou um total de 144.527 casos de Aids (fazendo um percentual de 30% do total mundial)) ficando apenas um país africano à época, sem comunicar: o Seychelles. O destaque seguinte é para as Américas com um total de 268.477 casos (representando uma porcentagem de 55% do total global), todos os países das Américas relataram casos de AIDS, com Os Estados Unidos liderando o grupo. Depois temos o continente Europeu que notificou 66.126 casos (representando uma porcentagem de 14% do total global). Ficando a Albânia à época sem notificar nenhum caso. Na Europa o maior número de casos notificados vem da Europa - Ocidental: França, Itália, Espanha, Alemanha, Reino-Unido e Suíça.
Essa visão panorâmica da primeira década de AIDS no mundo apontava para a gravidade do que significaria a trajetória da epidemia, que naquele período foi notificada como uma pandemia, visto que se tornara global (Montagnier, op. cit).
No início da segunda década da pandemia - 1992 - o quadro de pessoas infectadas era o seguinte: havia 12,9 milhões de pessoas infectadas no mundo inteiro (incluindo 4,7 milhões de mulheres, 7,1 milhões de homens e 1,1 milhão de crianças). Cerca de um quinto (2,7 milhões 21%) desenvolveram AIDS; delas, mais de 90% (aproximadamente 2,5 milhões) morreram (cf. A AIDS no Mundo, 1993:2) . Aproximando-nos do final dessa segunda década, o quadro que se apresenta é outro, num índice de maior gravidade, suscitando cada vez mais a preocupação do mundo quanto às expectativas futuras de se constatar sempre mais uma escala ascendente de pessoas infectadas pelo HIV, de pessoas doentes, morrendo de AIDS.
Nessa segunda década a elevação do nível de pessoas alcançadas pela AIDS é bastante significativa, superando consideravelmente há primeira década. Nesse final de 1998, é o seguinte o quadro de pessoas alcançadas pela AIDS, segundo as novas estimativas da União Nacional de Programa em HIV/AIDS (UNAIDS) e da OMS (Organização Mundial de Saúde), no Sumário Global da Epidemia o número de pessoas vivendo com HIV/Aids é de (33.4 milhões no mundo), sendo 32.2 milhões de adultos, 13.8 milhões de mulheres, e 1.2 milhão de crianças menores de 15 anos. O número de pessoas mortas é de (2.5 milhões no mundo), sendo 2.0 milhões de adultos; 900.000 de mulheres; e 510.000 de crianças menores de 15 anos de idade. O número total de pessoas que morreram nessas duas décadas com essa epidemia de AIDS é de ( 13.9 milhões no mundo), sendo 10.7 milhões de adultos; 4.7 milhões de mulheres; e 3.2 milhões de crianças com menos de 15 anos de idade. O total de novas pessoas infectadas com o HIV/AIDS em 1998 é de (5.8 milhões de pessoas), sendo 5.2 milhões de adultos; 2.1 de milhões de mulheres; e 590.000 de crianças com menos de 15 anos de idade.
Em face de toda a complexidade trazida pela AIDS, cabe uma questão: qual foi o fato social que fez com que a AIDS se instituísse, em todo o globo, sob a mesma caracterização, unindo pessoas de cor, raça, credo, condição social e intelectual num mesmo contexto? O que acontecia no mundo que facilitou o surgimento da pandemia de AIDS ( C. Ferreira 1994)? Não temos uma resposta certa para tal indagação, nem tão pouco sabe quem a tem. Alguns estudiosos da AIDS, como Luc Montagnier (1995), já citado acima, e Cláudio V. L. Ferreira (1994), G. Rotello (1997), L. Chaitow e S. Martin (1988), dentre outros, são do pensamento de que os modos de organização da sociedade moderna em classes sociais distintas, compostas de grupos de pessoas dominantes e pessoas dominadas, o volume de pessoas vivendo em condições de miséria, acarretou sérios problemas na organização da sociedade, principalmente nos grandes centros, impulsionando a criação de grupos marginais, a intensificação de pressões psicológicas, à violência, o crime, entre outras coisas.
Para Montagnier (op. cit) a origem da epidemia residiria nas transformações de nossas sociedades porque:
“... o vírus da AIDS não mudou, mas a população se tornou mais sensível”. ... Os fenômenos sociais ligados às misturas de populações permitiram sua rápida propagação por via sexual. Nos países ocidentais, se pode mencionam a liberação sexual que acompanhou a difusão da contracepção hormonal e o reconhecimento da homossexualidade; nos países de Terceiro Mundo, a ruptura das comunidades tradicionais, associada ao desenvolvimento econômico e social.”

Segundo este autor, a junção de todos esses fatores, de ordem cultural e social foi a causadora da epidemia de AIDS em todo o mundo, visto que as mudanças sociais não ocorrem isoladamente; elas começaram em locais específicos, mas se estenderam por todas as sociedades globais. Essa questão leva imediatamente à discussão dos “grupos de risco”, por conta de todo o turismo sexual feito, em princípio, pelos Gays que são norte americano por várias localidades do mundo todo, especialmente no Continente Africano. Mas não apenas isso, visto que outros fatos aconteciam: o consumo das drogas injetáveis, a prática homo/bissexual, a prostituição feminina, o sangue não tratado e seus hemoderivados. Segundo C. Ferreira ( po. Cit p. 36-7),
“Quanto mais a sociedade se organiza, mais tem se tornado presente a questão da angústia, do estresse, do medo, da desorganização de costumes, etc. É sabido que esses sintomas, bem como o cansaço, poucas horas de sono, vida sedentária, dentre outros, têm efeitos imunodepressores”,

o que reforça as afirmativas de outros autores de que a Aids ao se instalar na vida das pessoas, o faz com mais rapidez, causando danos maiores à saúde, quando encontra corpos que se enquadram nesse padrão descrito por Ferreira. E, nessa perspectiva, ele vê a AIDS como conseqüência e não causa de problemas, e que existem evidências de que o comportamento pode influenciar a função imune – para mais ou para menos. É justamente nessa perspectiva que se inscreve a categoria dos homossexuais, como sendo a mais afetada até hoje.
A pandemia de AIDS ao se instaurar na sociedade, não traz com o seu advento uma questão inovadora. A história das sociedades humanas é marcada pelo surgimento de várias epidemias. Os seres humanos, em sua passagem pela vida estiveram sempre em confronto com questões de doenças endêmicas e epidêmicas, sempre lidando com o fenômeno da morte iminente, apesar de sempre tê-la distante da sua expectativa.
A. Camargo (1995, 29-31), relata alguns casos de epidemias que assolaram populações inteiras. Segundo ela, “no final do século XIV a presença da Peste na Ásia, fazendo 25.000 de mortes e propagando-se pela Europa, dizimando um terço de sua população.” “Os soldados Europeus, levaram para o Novo Mundo moléstias epidêmicas causando a morte de 19.000.000 de Astecas no final do século XV” , a exemplo também, segundo a autora, da Febre Amarela, da Varíola, da Peste Bubônica, e da Tuberculose, que foi considerada como a doença do século XIX que mais causou mortes no mundo.
Nessa mesma perspectiva, discutem outros autores, como Cleuza P. Ornellas, no seu trabalho “O Paciente Excluído” (1997) : analisando a prática asilar no século XIX, mostra como a tuberculose foi uma doença tratada como “doença metáfora”. Para ela, a tuberculose ocupa um lugar de destaque no quadro epidemiológico desse período, bem como compõe as estruturas de representações e fantasias das pessoas. Segundo essa autora, naquele período a tuberculose foi considerada como uma doença incurável, ou de possibilidades de cura remotas. E esteve sempre relacionada a uma morte romantizada.
A história da doença no século XIX, diz a autora, “contém e reflete as contradições que se produzem nesse período histórico: o crescimento vertiginoso da economia, produto do capitalismo emergente; o aumento das populações e sua transferência para as cidades; o avanço dos conhecimentos científicos.” Ornellas faz uma análise interessante dessa fase romântica da tuberculose, dizendo que essa visão romantizada da doença “semeou heróis na literatura, no teatro, na música, na poesia” (idem, 125-6). Mas ela também faz a ressalva para o fato de que a tuberculose não foi só a doença dos ricos românticos. Ela foi também à doença dos pobres (socialmente excluídos), que eram tratados de modo diferente dos ricos romantizados.
A representação de uma época configurada em dois lados da sociedade capitalista: ricos e pobres, ambos suscetíveis de adoecer, ambos mortais, apesar de seus contextos de vida ser diferentes. Ornellas ( idem ) argumenta que, somente a partir da descoberta do agente etiológico da tuberculose: o bacilo de Koch, é que se observa uma mudança nesse cenário. Com essa descoberta termina a romantização da tuberculose para os ricos, quando o “herói e a heroína” perdem seu status, e passam a ser os portadores de uma doença que contagia os que não são portadores. Eles também causam risco para os outros. Como diz Ornellas ( ibid. ), “o mito perde a sua fantasia.”
Uma análise similar a essa é feita por Susan Sontag (1984, 21; 30-1) . Segundo ela, a tuberculose também é uma doença de ricos e de pobres. Quando se trata do rico ela é associada a questões do amor inusitado, das paixões avassaladoras que terminam por criar estados febris, rostos pálidos, figuras esguias, talhadas pela “doença do amor.” Quando se trata dos pobres, ela é associada à privação, à falta de alimentação, de agasalhos, de moradias, de aquecimento, de higiene básica, et al.
Dentro desse mesmo debate, ainda retomamos A. Camargo (op. Cit.), visto que a mesma é do mesmo parecer de que a tuberculose é a epidemia do final do século XIX que tem representações semelhantes à tuberculose e ao câncer, e que acrescida a essas representações as categorias de ser sexualmente transmissível, de seu agente etiológico, ter uma ação lenta e do portador ser sadio. Segundo ela, “a tuberculose é o exemplo mais ilustrativo das conseqüências das doenças infecciosas na sociedade moderna, por ser considerada a doença do século que só foi identificada após um longo trabalho de investigação.”
Pela crueldade dos danos causados à população, a tuberculose foi considerada uma peste da urbanização, da industrialização e das condições sórdidas da vida do novo proletariado. “Os testemunhos encontrados na literatura como ‘A Dama das Camélias’ e ‘A Montanha Mágica’, entre tantos outros, podem nos ajudar a compreender o que representou a tuberculose para o homem daquele período”, diz a autora. Ao que nos parece, essa romantização se configurou num instrumento ideológico das classes sociais abastadas, como um mecanismo simbólico e imaginário de negação da sua condição humana de ser alcançada por uma doença tão vil.
Nessa perspectiva da experiência da AIDS, podemos fazer ainda outra analogia com outra epidemia que assolou as populações no final do século passado. Trata-se da Sífilis, também conhecida como “Lues”, Uma doença venérea que marcou profundamente, no século XIX ( e o faz até hoje), a vida das pessoas. Essa doença não tem como característica principal a morbidade, porém se destaca pelos seus efeitos permanentes, se reproduzindo até em outras gerações É transmitida pela relação sexual e o seu agente transmissor permanece no sangue da pessoa infectada por muito tempo, podendo se manifestar até nas gerações futuras. Seus sintomas são discretas lesões (pequenas feridas) nas genitálias, masculina e feminina. Sendo indolor, se manifesta num espaço de trinta dias após a relação sexual, desaparecendo um mês depois. É diagnosticada através de um exame de sangue (sorologia). O seu agente vetor é uma bactéria “Treponema pallidum.” O exame de sangue, em algumas pessoas pode dar positivo (em concentração muito baixa) por toda a vida, mesmo depois da cura completa da pessoa. ( Cf. DST/UFF – Sociedade Brasileira de doenças Sexualmente Transmissíveis .
Numa breve abordagem sobre essa doença, sem aprofundamentos em sua etiologia, mas apenas para compará-la com a AIDS, buscamos referência nos trabalhos de Sérgio Carrara (1994) , que desenvolveu pesquisa para analisar a história social da luta contra as doenças venéreas no Brasil. Segundo este autor, a partir do perfil adquirido no final do século XIX, a sífilis se oferece, entre as doenças venéreas como um símile ou ponto de partida à comparação quase perfeita para a Aids.
“Como a AIDS hoje, a sífilis envolveu representações sociais muito amplas, que incidiram sobre os mesmos pontos: a sexualidade (em especial os comportamentos sexuais considerados excessivos, desviantes, promíscuos); o medo do contágio e da contaminação: a decadência social, ou a possibilidade de uma morte coletiva. Também como a AIDS, a sífilis trouxe à tona graves questões institucionais relativas aos limites das intervenções médicas, legal e moral ou educativa no combate a uma doença” ( cf. p. 273-4).

A análise desse autor é significativa no sentido de que estimula o debate no trato das questões da intimidade, do fórum íntimo das pessoas, mas sempre deixando à mostra que a intimidade passou a ser discutida e direcionada pela esfera pública. Ficou sendo um assunto gerenciado no espaço social da coletividade. Portanto, mesmo que a doença afete no nível individual e seja decorrente de práticas individuais da intimidade, a esfera pública se apropria da questão e impõe modelos e normas direcionando os rumos da mesma. Isso pode ser comprovado nos modos como o Estado e a medicina se organizaram, no século passado, para tratar dessa doença, localizando os grupos de transmissores, e desenvolvendo campanhas de prevenção.
Sendo a AIDS neste século, como o foi a sífilis no passado, doenças que foram diagnosticadas, em primeira instância (porém não apenas nela), como “uma doença da prática sexual,” por isso prática inter-relacional, essa analogia adquire pertinência quando se encontram na história relatos que funcionam como pontos de ligação entre dois fenômenos distantes, porém análogos. Avançando um pouco mais no trabalho de Carrara, pinçamos alguns aspectos que consideramos pertinentes para mostrar as analogias entre o contexto social histórico da AIDS e o da sífilis. O autor analisa o período da sífilis sob duas perspectivas: as ações sanitárias do Estado para deter a epidemia da sífilis configuradas no modelo do regulamentarismo, e da religião no modelo do abolicionismo. Esses dois modelos representaram duas instâncias de poder devidamente instituídas pelo lado do Estado, para regulamentar a prostituição, e pelo lado da religião, para combater a prostituição.
O regulamentarismo foi um modelo trazido para o Brasil, importado da França, onde se instituiu a partir da primeira metade do século XIX para combater a libertinagem, proteger a moral das famílias e moralizar o espaço público. O modelo abolicionista surgiu no Brasil no mesmo período, originado dos meios protestantes ingleses, e compunha-se de um conjunto de idéias e de propostas diversificadas do regulamentarismo, visto que em muitos pontos discordava totalmente deste, com críticas duras: de ineficácia dos regulamentos contra a prostituição e de reconhecimento da prostituição como profissão. O que o abolicionismo queria era a radicalização de todos os prostíbulos, do vício e das doenças venéreas decorrentes dessas práticas.
Assim, os dois movimentos se instituíram de modos diferentes e em instâncias de poder diferentes: Estado e Religião. Os regulamentaristas, como nos mostra Carrara, viam os homens de modo diferente das mulheres, pois eram dotados de um impulso sexual irreprimível, que se não fosse dirigido para as prostitutas, acabaria atingindo as mulheres “respeitáveis”. Nesse caso, “prostituição vista como o mal necessário”. Os abolicionistas viam os homens com a mesma capacidade das mulheres de controlar os seus impulsos sexuais, isto é, “quando se reconhecia nelas a existência de tais impulsos”. Portanto, deveriam existir as mesmas regras morais para as duas representações de gênero: masculino e feminino (cf. p. 278-9).
Os modelos, pois, vinham gestados em propostas distintas, mas cada qual trazendo no seu bojo conteúdos de sustentações ideológicas diferentes, de suas bases pedagógicas. O regulamentarismo, segundo o autor, constava de um tipo de intervenção legal ou jurídico-punitiva; em contraposição, o abolicionismo constava de um tipo de intervenção pedagógico-disciplinar, ou moralizadora e educativa.
A comparação entre a AIDS e a sífilis, feita por Carrara na fase preliminar da sua pesquisa, aponta para dois pólos de aproximação entre as duas doenças: o primeiro é o da sexualidade e do conflito entre duas morais: uma científica e a outra laica. Assim, no trato das duas representações, uma é vinculada à figura marginal da mulher, enquanto a outra às práticas homossexuais masculinas. Em ambas as práticas para se atuar eficazmente no campo da prevenção se requereram um discurso público dos comportamentos sexuais (no caso da AIDS não apenas esses), fortemente estigmatizados. O segundo é o de que, tanto num tipo de infecção – sífilis ou AIDS – quanto no outro, o portador foi sempre excluído do convívio social, construindo-se um círculo invisível em torno desses doentes, no caso da intervenção moral disciplinar, que procurava fazer com que os sãos se afastassem dos locais, ou dos “focos da infecção.”
O que faz a significativa diferença entre essas duas epidemias está mais ligado à resposta dada pela sociedade civil para fazer face à nova doença: a AIDS, que através de grupos organizados como: os Grupos Gays, as Organizações de Base Comunitária (EUA), as Organizações Não-Governamentais, o Movimento Feminista, e outras representações de grupos organizados em defesa da vida: Movimento Ecológico, dentre outros, vêm ao longo dessas duas últimas décadas interagindo junto às populações de pessoas portadoras, e fazendo pressão no mundo todo junto ao poder público e privado, requerendo toda a assistência necessária: atendimento médico-hospitalar, medicamentos, reinserção nos campos de trabalho, reivindicação de assessoria jurídica e outras tantas necessidades.
Assim, AIDS e Sífilis se aproximam na questão, por serem ambas transmitidas pela relação sexual; pelo desvelar da intimidade; porque tem de início uma categoria de atores como os responsáveis pela transmissão: na sífilis, são as prostitutas e na AIDS são os homens homossexuais; requerem ações dirigidas do puder público para seu tratamento e prevenção; porque incorrem em estigma e exclusão; porque são transmissíveis pelo sangue, pela intervenção de duas instâncias de poder na sociedade: o Estado e a Religião. Mas, essas aproximações não são significativas para pôr as duas doenças em pé de igualdade, ficando a AIDS em condição de superioridade perante a sífilis: porque ela é letal, porque até hoje ainda não se encontrou a sua cura, porque ressignifica outras doenças: câncer, tuberculose, hepatite B e C.
Os contextos sociais e históricos de cada sociedade são permeados de lutas contra as doenças, como já notificamos acima. Fica notório em tudo isso que a condição da vida humana é determinada pela realidade sociocultural, econômica e política de cada época. Essa constatação nos aproxima do fenômeno da AIDS, porque se tenta explicar seu surgimento como resultado das contingências da vida cotidiana, como objetivamos no nosso trabalho. A epidemia de AIDS tem a sua capacidade espetacular de mobilização global da vida e das questões sociais, da ciência, e da tecnologia, da cultura, da política e da economia. Favoreceu aos grupos emergentes se expressarem e interferirem na ordem vigente, a exemplo da medicina – na relação médico/paciente – no fato de que hoje essa relação está completamente reconfigurada ( K. R. de Camargo Jr. 1995 ). Segundo este autor, “a AIDS tornou-se um poderoso holofote iluminando tensões subterrâneas negadas em nossas sociedades, algumas internas à própria medicina, expondo fantasias mais ou menos ocultas a respeito de vários tabus da nossa cultura.” Isso porque na atualidade a relação médico/paciente, no que tange ao tratamento do HIV/AIDS, vem mudando cada vez mais à medida que o tempo passa.
Sendo assim, a emergência da AIDS foi capaz de (re)colocar as relações humanas na sociedade sobre outro patamar, impondo a superação dos limites impostos anteriormente entre os indivíduos e determinadas instituições sociais: poder político, religião, medicina, entre outras.

1.3- Registro Simbólico e Identitário.

O termo identidade não guarda uma definição única, restrita a paradigmas ou conceitos uniformes, mas se define e pode ser conceitualizado de múltiplas formas, e sempre em consonância com o campo de estudos em que esteja sendo tomado. Portanto, as concepções do termo identidade são múltiplas, e para cada tipo de abordagem cabe uma conceituação própria, específica, dependendo dos aspectos em que esteja sendo tratado, e do que se quer definir.
No nosso trabalho, como pretendemos analisar o comportamento de uma dada população infectada por HIV/AIDS, nas expressões das suas identidades, que pressupomos se redefinem a partir de um diagnóstico médico de infecção, as representações da identidade que nos interessa abordar são as de identidade pessoal, visto que, o trato de uma representação identitária imediatiza o surgimento de outras representações.
Na perspectiva discursiva da teoria interacionista simbólica é o eu considerado consigo mesmo; o eu interior; e depois o eu interagindo com o social. O que particulariza essa teoria é a concepção da sociedade enquanto uma entidade, composta por indivíduos e grupos que numa ação interativa buscam partilhar os sentidos sob a forma de compreensão e expectativas comuns (idem). O encontro permanente com o outro é condição sine qua non para isso, sendo nessa experiência que as semelhanças e dessemelhanças são reveladas. Fica, então, a identidade sempre a ser construída na perspectiva interacionista com o outro, ou outros. Dizemos que ela parece sempre ser um jogo de representações, onde os indivíduos assumem o papel de verdadeiros atores, os personagens de um enredo criado por eles próprios, sempre na intenção de outro, mas em benefício pessoal. É na identificação do outro que o indivíduo define a sua identidade pessoal. Enriquecendo mais a conceituação de identidade, tomamos o trabalho de A. Ciampa ( 1988, 61-2 ). Para este autor,
“a identidade é uma totalidade. Uma totalidade que é contraditória, porque é múltipla e ao mesmo tempo mutável, porém é também, ao mesmo tempo una”. Ele diz que “o ser é uma unidade de contrários que é uno na multiplicidade e na mudança.” Ele diz também que “Identidade é diferença e igualdade. Mas isso é um processo, visto que as pessoas vão sucessivamente se diferenciando e se igualando, de acordo com os seus grupos sociais de pertencimento.” (idem)

Isto nos deixa perceber que é a partir desse processo que se criam as diversas instâncias identitárias. Na abordagem interacionista simbólica, alguns autores são proeminentes nessa discussão. Dentre eles destacamos Erwing Goffman (1975). Este autor toma a dramaturgia como uma forma de analisar a representação da identidade. Segundo ele, a representação do eu ocorre na expectativa que o indivíduo cria para si mesmo sobre o modo como os outros irão percebê-lo, notá-lo, compreendê-lo. Mas também, cria expectativas tanto sobre o que ele espera dos indivíduos e os indivíduos esperam dele; mantendo expressões e criando expectativas sobre si mesmo, mantendo influência que tem reciprocidade sobre os outros.
Tereza Haguette ( 1995, 54-5 ), ao se referir a esse trabalho de Goffman, diz que nesse seu trabalho Goffman:
“tenta demonstrar a importância que as aparências exercem no comportamento dos indivíduos e dos grupos levando-os a agir no sentido de transmitir certas impressões aos outros e, ao mesmo tempo, de controlar seu comportamento a partir das reações que os outros lhe transmitam a fim de ‘fazer passar’ uma imagem que difere da que eles realmente são. “Os homens estão constantemente lutando no sentido de projetar uma imagem convincente aos outros.” (ibid.)

A identidade é também uma instância da condição humana que possui certa mobilidade, visto que ela acompanha a trajetória dos indivíduos e as mudanças efetuadas por eles nas sociedades. Cristopher Lasch (1990, 23-4) diz que a identidade possui um significado mutante, pois os indivíduos são seres mutantes. Ele vê nesse estado de mutação uma grande significação para as percepções mutantes tanto do eu quanto do mundo exterior, ou o outro. “O significado mutante de ‘identidade’ ilumina o vínculo entre as percepções mutantes do eu e as percepções mutantes do mundo exterior.” Ao que nos parece, nessa perspectiva da abordagem de Lasch se consolidam as interligações entre as duas identidades - a pessoal e a social. Quanto à individualidade, ele diz que “ela supõe uma história pessoal”, com a participação da família e dos amigos, “um sentido de situação”, pois o eu diminui pondo-se sob um núcleo de defesa máxima contra as adversidades de vida. O eu requer que se tenha certo equilíbrio emocional, um “mínimo eu”, sem ser esse o eu soberano do passado.
Assim, entendemos que a identidade deixa de ser um referencial uniforme, de auto-identificação e passa a ser a noção que os indivíduos começam a ter de si mesmos, da sua personalidade, da sua própria auto-imagem, tomando a dimensão do outro (ou outros), para construir a sua auto-imagem . Nessa perspectiva, Lasch diz que “é o que dá para ser,” por isso é incerta, é descontínua, ficando aos cuidados de situações várias que possam e devam ser vividas.
Na intenção do nosso trabalho, quando nos propomos a analisar a redefinição das identidades dos portadores de HIV/AIDS, a discussão da identidade, nos modos como é definida, torna-se tema significativo. Portanto, para uma melhor compreensão da questão, tentaremos conceituar as duas definições do termo: identidade pessoal e identidade social. Identidade pessoal é a forma de a pessoa se definir na sua dimensão interior. É a concepção que se tem da própria existência humana, construída psiquicamente. Essa construção se dá através da formação da personalidade, por meio de identificações. Na dinâmica intra-psíquica da psicanálise freudiana, a identidade resulta de uma lenta construção da imagem que o indivíduo constrói de si mesmo, articulando o seu próprio corpo, a consciência da sua intimidade, seus segredos, o conjunto dos seus papéis nas experiências de trocas com as outras pessoas, e o seu universo afetivo e suas representações, que podem ser causadoras de conflitos e dos comportamentos desviantes (Lehmann-Carpzov, 1994).
A identidade pessoal é tratada na perspectiva psicodinâmica a partir da psicologia, ou da psicanálise. Freud, na sua prática psicanalítica, teve como objetivo reativar na vida adulta as experiências atravessadas da infância: “admitir com dor que os limites do corpo são mais estreitos que os limites do desejo.” (Násio, 1996). Ela não se define numa única dimensão, como pista de mão única. Segundo Lehmann-Carpzov (1994: 124), “Para a psicologia, o conceito de identidade pessoal é construído mediante articulação do sentimento que se tem da imagem do próprio corpo em sua existência física e daquilo que se chama o produto dos papéis que o indivíduo assume no seu desempenho social.”
A identidade pessoal só se define na concepção do autoconhecimento, da representação do eu (de que trata Goffman), para a exterioridade. A imagem que se constrói do corpo dá uma primeira noção dessa identidade, e uma segunda noção seria formada pelos atributos ofertados pela exterioridade: o biotipo, a nacionalidade, situação civil, idade, trabalho, altura, filiação, fator sangüíneo, etc.
Para a autora já referida (1994:125), “A identidade pessoal assim considerada surge concomitantemente como um correlato do corpo e dos estímulos físicos dele provenientes, bem como resulta da condensação dos papéis do indivíduo na sua interação social.” Portanto, a identidade pessoal é uma representação individual formada na dimensão da autopercepção, do self, da subjetividade. É resultante da construção que os indivíduos fazem da imagem deles mesmos, articulados com a sua autopercepção, seus atributos, e seus valores: cultura, práticas de vida, e outros. E está sempre em processo, não sendo nunca estável, e sim mutante (a exemplo do que conceitua Lasch), como já citamos acima. Na intenção de ir mais adiante ao debate, tomamos como referência o trabalho de J. Burity (1997). Para ele, as identidades não estão nunca acabadas.
“Elas estão em falta desde o início, elas são falta constitutiva, falta que precisa ser preenchida, mas nunca encontra o ponto final de equilíbrio, pois o nome da falta é o desejo do Outro, que segundo a perspectiva lacaniana, é insaciável, inalcansável – não tanto por sua sublimidade, mas porque o Outro também, não é o ser em plenitude e ser desejante.”

A partir dessa argumentação de Burity, abrimos o espaço para uma conceituação de identidade social. A identidade social pode ser definida, ou conceituada como um contínuo da identidade pessoal. Ela é o prolongamento da autopercepção. Nesse parecer, o termo social passa a ser o espaço in locus, onde o eu se representa. Isto porque, ao que nos parece, a identidade pessoal só se define na atividade relacional, interativa, identificatória. Podemos dizer também, que a identidade social é um desdobramento da identidade pessoal, já que em cada forma de interação ela é representada de modo diferente, mas significativo. Segundo Ciampa (1988: 67), nós nos representamos a nós mesmos, nos grupos onde nos inserimos, de forma que “estabelece-se uma intrincada rede de representações que permeia todas as relações onde cada identidade reflete outra identidade, desaparecendo qualquer possibilidade de se estabelecer um fundamento orginário para cada uma delas.”
Assim, sendo a identidade social um contínuo da identidade pessoal, é impossível dissociá-las. Os desdobramentos da identidade estão em múltiplas configurações, se relacionam se explicam nas dimensões mais diversas na estrutura da sociedade, pois é nesse contexto que o homem está inserido, que decorrem suas determinações de vida, nascem as suas possibilidades (idem). Ciampa (1988,72), também advoga que “é do contexto social em que o homem vive que decorrem as suas determinações e, consequentemente, emergem as possibilidades ou impossibilidades, os modos e as alternativas de identidade.” Lehmann-Carpzov (1996:124) é do pensamento de que a identidade pessoal e a identidade social se complementam mutuamente. “No plano pessoal a identidade é a consciência da ‘mesmidade’ e no plano social, ela é o reconhecimento da diferença, pois as construções das imagens com que os sujeitos e povos se percebem passam pelo emaranhado de suas culturas, nos pontos de interseção com suas vidas individuais.”
Superando essa discussão etimológica do termo, buscamos encontrar outros nexos para tratar a questão da identidade. Um desses nexos se constitui de que a questão da identidade incorre na compreensão da necessidade de um projeto político, a partir do qual as representações, postas frente a frente, em relações interacionais disponham da vida, do tempo, das idéias, num jogo de interesses favoráveis a todos (Ciampa, 1988). Um projeto político no qual, para o ser, interagindo socialmente, mas ao mesmo tempo cindido entre a condição individual e a social, necessita negar o outro como ser, ou ao menos pôr esse outro, que também é ele, fora do seu alcance. (idem). Tal projeto político se configura numa busca das identidades, do estado de ser da pessoa, do cidadão, e da própria hominização: ser pensante, racional, interativo. Um projeto para definir uma política de identidade, uma busca pela existência das instâncias identitárias, dos direitos de “ser”, “existir”, “intervir”, “dar e receber”, “se representar do modo como se é, ou se pensa ser.” (ibid..)
A formulação de uma política identitária do homem na sociedade, a realização de projetos políticos, para existir coerentemente com os seus propósitos, necessita de ser efetuado coletivamente, e democraticamente. Por isto, Ciampa (ibid.) sugere que dois fatores devem ser considerados como inviabilizadores num projeto político de identidades, além de outros. O primeiro, diz respeito ao primado da autoridade social sobre a identidade, sobre a autonomia individual; O segundo são as representações identitárias já estabelecidas, que permanecem se põem estáveis, e impedem as mudanças sociais, as novas representações identitárias, visto que “identidade é um movimento, é desenvolvimento do concreto. Identidade é metamorfose. É sermos o Um e Outro, para chegarmos a ser um Um numa infindável transformação (idem, p.74). Nessa mesma intenção, voltamos ao debate de Burity (idem p. 3). Para ele, também, “toda identidade é política” e “toda identidade é politicamente ativa”; “a afirmação ou o surgimento de toda identidade e porque referida afirmação consiste em traçar uma fronteira que separa o sou/somos do que não sou/somos, o campo de constituição das identidades é o campo da política.” Um campo que é amplo, abrange um universo representacional significativo, que é antagônico, pois se constitui de disputas pelo espaço na vida.
A questão de um projeto político das identidades está, dentre outras coisas, na demarcação dos territórios, ou espaços, onde elas se representam, ou desejam se representar. Burity (IBID, pp. 4-5) diz que “Dizer que a política está na raiz do surgimento e processo de toda identidade esbarra no fato de que muitas identidades se afirmam como apolíticas ou mesmo anti-políticas e na descoberta mais recente de que existem recessos, reentrâncias no social que se quer que estejam ao abrigo da política. No exercício desse projeto político, as identidades se expressam numa dimensão de instituintes, ao se representarem, ao interferirem na ordem já estabelecida. Burity, diz que “o político é um nome da dimensão de toda prática e identidade,” “a política diz respeito à explicitação de uma lógica de ação coletiva que demanda a definição de programas e projetos e que implica na institucionalização de práticas ou normas de alcance coletivo (nos limites universalmente aplicáveis).”
A experiência da AIDS forçou as identidades, já instituídas, a se reinstituírem. Postas sob uma nova condição de vida, as pessoas portadoras de HIV (soropositivas), ou pessoas doentes de AIDS necessitaram buscar para si novas identidades para sua reinserção nos espaços sociais a partir de uma nova realidade. Essa nova condição de vida, forçada a partir de um diagnóstico médico, desencadeia a crise das identidades. Tal crise se dá através de algumas mutações oriundas da condição física em que é posto o portador (doenças oportunistas), e das mudanças nas práticas vivenciais, tais como: quebra ou afastamento de alguns laços afetivos (vida conjugal, familiar, amizades); são as mudanças nos espaços sociais que se freqüentava anteriormente, porque se passa a freqüentar outros lugares nunca cogitados antes (hospitais, ambulatórios, consultórios médicos, laboratórios, consultórios psicológicos); mudança nos hábitos (alimentação, tomar medicamentos diariamente em horários combinados, práticas de sexo, beber, fumar, etc.); apreensão e decodificação de uma nova linguagem (os nomes dos medicamentos, os termos da ciência médica: sistema imunológico, CD4, carga viral, janela imunológica, cópias de vírus, célula T auxiliar, protease, infecção oportunista, Teste ELIZA, Teste Western Blot de confirmação, soro-prevalência, transcriptase reversa, etc,). Assim, todo esse novo contexto sociocultural desencadeia a crise nas identidades, e impõe uma redefinição das mesmas. Novos modos de vida são criados a partir dessa crise das identidades.
Nessa perspectiva, entendemos que tratar de redefinição das identidades dos portadores remete à discussão de crise de identidade, visto que o ato de redefinir implica em que houve conflitos, e incertezas em relação à identidade já definida, às escolhas já feitas precedentemente, visto que pelo fato das identidades serem mutantes, elas estabelecem definições. Situando melhor essa abordagem do conceito de crise, na etimologia da palavra, segundo o Novo Dicionário do Pensamento Social Século XX (1996, 156-7), já citado anteriormente,
“falamos “crise” em relação a sujeitos, a uma vida ou uma forma de vida, a um sistema ou uma “esfera” de ação. As crises decidem se uma coisa perdura ou não. O caso paradigmático de crise é a crise de vida, na qual, se levada ao extremo está se tratando de uma questão de vida ou morte.” “A crise leva aos confrontos com as questões básicas: ser ou não ser, fazer ou não fazer, e nascem questões objetivas, mesmo, às vezes, o indivíduo não, possuindo numa primeira instância, o conhecimento de onde ele se originou”. “Elas também sempre afetam a autocompreensão e a autodefinição de agentes, sistemas ou esferas, uma vez que sempre afetam sua ‘identidade’, isto é, uma vida ou situação de vida como um todo.”

As crises são sempre resultantes de alguma situação externa, contingente, mas elas também são do interior, dos processos cognitivos. Todavia, o campo onde elas se representam é na exterioridade. Segundo Ott F. Bollnow (1974, 42-3), a crise pode e deve evoluir do interior, e não ser oriunda das transições das fases psicobiológicas, que não sofrem uma interferência da exterioridade, ou digamos, dos contextos sócio-políticos, nos quais o indivíduo está inserido. Ballnow diz que: “na crise, sempre se trata de um distúrbio no processo normal de vida; essa perturbação se destaca pelo caráter repentino do seu aparecimento e por sua intensidade fora do comum; na crise a continuidade de vida aparece totalmente ameaçada e pelo trânsito através da crise se estabelece por fim um novo estado de equilíbrio” (idem ).
Ainda segundo Ballnow, a crise possui uma significação: ela é purificadora; por ela o indivíduo procura livrar-se das impurezas e ressurgir novo, limpo, liberto; e é também uma decisão. O indivíduo deverá optar entre possibilidades, de modo que nessa opção ele recupere o equilíbrio biopsíquico e se sinta restabelecido e pronto para retomar sua vida, visto que, na situação de crise ele pára as suas atividades. Entrar e sair da crise, segundo Ballnow, é um momento de “êxodo e de êxito. É um novo despertar.” Desse modo, fica notório que a identidade está sempre em mutação, e que essa mutação remete à crise. Nessas interpretações encontramos os precedentes teóricos para a discussão das identidades no nosso trabalho, no modo como se representam no gênero, na exclusão e nos posicionamentos das políticas públicas dos governos, na intervenção das ONGs e no papel de outras organizações junto às pessoas portadoras do HIV/AIDS.
Em suma, como tentaremos mostrar posteriormente na nossa análise de dados, as identidades são expressões da condição psíquica e social. As pessoas portadoras do HIV/AIDS ao se afirmarem em suas dimensões de vida tiveram que se articular com a sociedade, em suas diversas representações identitárias, numa prática política individual e social. Nesse processo, cogitaram mecanismos de identificações com a exterioridade. Em consonância com o que diz o teórico M. Maffesoli (1996), consubstanciando a nossa análise, “cada um para existir, conta uma história,”, pois “o eu só é uma frágil construção, ele não tem substância própria, mas se produz através de situações e das experiências que o modelam num perpétuo jogo de esconde – esconde.” Assim, são feitas as identificações com as identidades “a pessoa constrói-se na e pela comunicação.” Uma comunicação multifacetada, mas natural e benéfica a todas as identidades.

CAPÍTULO 2
QUESTÃO INSTITUCIONAL E ORGANIZACIONAL DA AIDS

Neste capítulo discutiremos os aspectos institucionais e organizacionais da epidemia de AIDS no Brasil através das medidas adotadas pelos governos, a instituição da saúde e a sociedade civil para enfrentamento da epidemia de AIDS. As questões que discutiremos se articulam com os modos como a sociedade brasileira se organizou respondendo aos embates da epidemia, visto que esta ao chegar aqui no país impactou a sociedade da mesma forma como o fez na Europa, nos Estados Unidos da América, e na África: causou o pânico da iminência da morte, redefinindo o tempo da vida, criando o estigma e a exclusão.
O que procuramos ver é a atuação do Estado e da instituição da saúde através de suas políticas públicas para tratamento e prevenção da AIDS e também as diretrizes para regulamentação e implementação das ações: prevenção, campanhas, propagandas, tratamentos, controle, etc. Também analisaremos o papel das Organizações Não- Governamentais – ONGs/AIDS – junto aos órgãos governamentais em favor dos portadores. Por último fazemos uma caracterização sociodemográfica e epidêmica da população que investigamos, buscando mostrar os contextos sociais políticos e econômicos sob os quis se estabelecem, verificando os efeitos das medidas adotadas pelos governos em suas vidas.
Logo, este capítulo se subdivide em três sessões: A AIDS no Brasil e suas dimensões políticas e sociais, As ONGs/AIDS no Brasil e suas mediações institucionais: governos e portadores, e a caracterização do portador do HIV/AIDS no Brasil – aspectos sociais, culturais e epidêmicos. A nossa análise se sustenta nos documentos governamentais elaborados para enfrentamento da epidemia (como já notificamos precedentemente na metodologia), e na pesquisa de campo através dos depoimentos dos profissionais de psicologia, entrevistados, que atendem aos portadores em duas ONGs onde realizamos a pesquisa em Recife, e nas falas dos portadores entrevistados, e recortes teóricos de autores que discutem as questões: Jane Galvão (1997), Dennis Altman, 1995, e Alexandre Granjeiro, 1994, e outros.
2.1- A Hóspede Indesejada
A questão de que trataremos aqui se articula com o papel desenvolvido pelas instituições sociais brasileiras, particularmente o Estado e a Saúde, nos modos como organizaram suas políticas sociais para fazer frente à epidemia da AIDS. Os aspectos institucionais e organizativos da AIDS, e também as políticas sociais gestadas para tratamento e prevenção são prioritários na discussão desse fenômeno, em qualquer abordagem, e localidade que se faça. Isto porque, em todas as realidades sociais que a epidemia de AIDS se instaurou e é investigada, seja na Europa, nos EUA, na África, na América Latina, no Brasil, a abordagem feita remete sempre às mesmas questões: explicação etiológica do vírus HIV/AIDS, as manifestações epidemiológicas da doença, respostas institucionais dos países para tratamento e prevenção. Em qualquer parte do globo o tratamento será sempre o mesmo. Logo, torna-se condição sine qua non investigar a epidemia da AIDS olhando para o seu panorama político-institucional mundial C. Bastos et al (1994) e Parker (1997). Como nos diz Parker (1997), os impactos causados pela AIDS vão muito além das dimensões demográficas que os números mostram, pois, “... o impacto da AIDS, as transformações sociais, culturais, políticas e econômicas produzidas pela epidemia e, talvez ainda mais importante, as diversas respostas que vêm sendo desenvolvidas para enfrentá-la, estão se tornando num complexo campo de análise.” A complexidade desse campo de análise rebate nas diversas dimensões da vida social: na construção dos projetos políticos para a sobrevivência da população portadora, no acompanhamento contínuo do desenvolvimento dos projetos e na gestão de novas ações preventivas e de tratamento, dependendo da dinâmica em que se estejam desenvolvendo as políticas sociais dos governos: pesquisas para detectação do número de pessoas afetadas (dentre outras), pesquisa da ciência médica para descobrimento de novas vacinas mais eficazes, financiamentos do Banco Mundial para implementação de tais políticas, e outras (Parker, 1997).
Os impactos produzidos pela AIDS no imaginário social, bem como nas próprias instituições sociais da saúde, e nos profissionais: médicos, enfermeiros, técnicos de laboratórios, etc., dificultaram a realização de um tratamento adequado da questão (no mundo todo) pelo estigma e a exclusão que se criou à época do seu surgimento. Pelo modo como foi notificada para o mundo, como doença de homossexuais masculinos pertencentes a uma classe social elevada, nos EUA e na Europa em primeira mão, e nos países de terceiro mundo (de economias em desenvolvimento) e os de quarto mundo, não se preocuparam com a possibilidade de que a AIDS os afetaria algum dia. No Brasil o surgimento da epidemia foi atribuído a uma categoria de intelectuais homossexuais masculinos (do Rio de Janeiro e de São Paulo) que gastavam o seu tempo fazendo turismo entre o Brasil e os outros países do primeiro mundo , razão pela qual não havia porque criar preocupações para com o problema. Somente a partir da diagnosticação em camadas inferiores da sociedade é que começou a preocupação com a questão (Granjeiro, 1994).
A sociedade brasileira esteve nos primeiros anos da AIDS no país alheia ao que estava acontecendo no mundo sobre a doença. A nossa preocupação dizia respeito às questões voltadas para a política e a economia. Vivia-se a grande crise social dos anos oitenta, de forma que a AIDS chegou ao país na hora errada e de modo errado.
O surgimento da epidemia de AIDS no Brasil coincidiu com mudanças significativas no seu contexto sócio-político e econômico. Essas mudanças diziam respeito à fase de transição política marcada pelo fim do regime militar (que durou praticamente vinte anos) e o início da redemocratização do país com a abertura econômica. Esse período se configurou numa crise social, das mais graves já ocorridas na história do país. Os sistemas sociais, como a educação e a saúde, desmoronaram e os movimentos sociais estavam completamente desarticulados (P. Elias, 1998, e S. Duarte, 1996).
O peso dessa crise econômica da década de 80 trouxe à luz as tensões subjacentes à vida social e política da nação. O cenário político foi marcado pelas demandas das forças sociais que se expressavam no florescimento dos movimentos de grupos emergentes: Movimento Feminista, Movimento Negro, Grupos Gays (S. Duarte, 1996).
O fim do regime militar permitiu ao país viver uma evolução política passando por uma transição democrática promissora, apesar de conflitante. A redemocratização possibilitou a elaboração de um novo texto constitucional - a Constituição de 1988 - chamada de Constituição “Cidadã” porque continha amplas garantias democráticas e sociais, jamais escritas num texto constitucional brasileiro (J. Noronha e Leucovitiz, 1994), culminando com as eleições diretas para presidente da República. Possibilitou também às instituições sociais buscarem a inclusão no texto constitucional de suas demandas sociais garantindo a sua legitimidade. Nessa perspectiva foi que a instituição da saúde implementou o seu projeto de criação do SUS (Sistema Unificado de Saúde), para unificação dos serviços públicos de saúde e a participação da sociedade civil na elaboração e avaliação da política do setor (Teixeira, 1997, L. A .C. Santos et al, 1994). Esse período foi de grande ebulição no meio do setor saúde. Segundo L. A. C. Santos et al ( 1994, 307),
“O movimento sanitarista fazia duras críticas às políticas de saúde elaboradas pelo governo militar. A proposta do movimento era de universalização de proteção social, através do Sistema Unificado de Saúde (SUS), para a unificação dos serviços públicos de saúde e a participação da sociedade civil na elaboração e avaliação da política do setor.”

O cenário político e econômico do Brasil eram marcados por uma correlação de forças que funcionavam no sentido de fazer uma abertura na economia valorizando o mercado de importação em detrimento dos interesses da proposta neoliberal que começava a ser preconizada no país. Nessa intenção, o Estado brasileiro começava a delinear suas políticas neoliberais tendo à frente um presidente civil (José Sarney), e realizando em 1989 eleições diretas para presidente da república, após quase trinta anos sem se votar no Brasil para presidente. Era este o quadro político do país na década de 80. Autores como J. Noronha e Lecovitz, 1994; Teixeira, 1997; Minayo, 1995; Cohn e P. E. Elias, 1998; Parker et al, 1994, concordam com a idéia de que a onda econômica neoliberal, originada a partir da década de 80 nos países centrais (primeiro na Inglaterra e nos Estados Unidos da América) avançou paulatinamente pelo mundo capitalista até alcançar os países periféricos de economia em desenvolvimento, entre os quais se acha o Brasil. Esse processo impactou as instituições sociais brasileiras, como a saúde, que contou com o apoio maciço do Estado para fazer suas reformas no sistema de saúde, abrindo definitivamente as portas aos serviços privados de saúde (Elias, 1998). As respostas neoliberais têm como uma de suas concepções fundamentais uma rígida contenção de gastos pelo Estado. E um dos seus alvos principais e mais freqüentes, são as políticas sociais, entre as quais as de saúde. Segundo Elias (1998), nessa intenção de implantar o neoliberalismo econômico no Brasil “... a temática da saúde é reuniversalizada, agora, porém, por meio de uma vertente predominantemente econômica e inserida nas mudanças por uma nova ordem econômica e mundial.”

Nesse período, a saúde foi uma das instituições sociais que logrou a atenção do Estado brasileiro para a implementação das suas políticas públicas. O Estado se impôs com presença marcante encaminhando as resoluções e ajudando a encontrar soluções. Tal atitude do Estado é explicada como resultado da sua proposta neoliberal que em “sã consciência” não pode dispensar a sua participação e também pela sua própria razão de Estado: definido como uma condensação de forças, de poder, que exerce uma dominação. E ainda como conceitua Elias (1998,62): “A idéia de Estado é, sobretudo conceitual, não se materializando em pessoas ou coisas, ainda que o termo possa encerrar o conjunto de instituições, organismos e instâncias decisórias que compõem o arcabouço funcional do Estado.”
A questão institucional da AIDS no Brasil envolve em ordem prioritária o papel do Estado de bem-estar-social a partir das suas políticas públicas para enfrentamento da epidemia, por um lado, e, por outro, a ação interventiva da medicina social, implementando as políticas de saúde junto à população infectada, seja para tratamento, seja para prevenção. As respostas dadas pelo Estado à sociedade são traduzidas pelo conjunto de medidas, normatizações e diretrizes adotadas, fazendo frente à epidemia. Este procedimento é o que chamamos de políticas públicas. Essas ações são vistas como o retorno dado pelo Estado perante uma dada necessidade manifestada pela sociedade, sendo de qualquer ordem. Segundo Teixeira (1997) o Estado, para atender as necessidades sociais, atua definindo o caráter do problema lança mão dos instrumentos legais para as resoluções das demandas, delegam as responsabilidades a quem de direito e dever, e adota, ou não, planos de trabalho, programas, etc. para sua implementação.
A AIDS surgiu no Brasil em 1982. A epidemia foi identificada pela primeira vez quando os pacientes de orientação homo/bissexuais foram notificados pelo sistema de vigilância sanitária do Estado de São Paulo, e depois no Estado do Rio de Janeiro. Segundo alguns autores brasileiros, dentre eles Minayo (1995); A. Granjeiro (1994); e Parker (1997), a Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (AIDS) já havia sido introduzida no país desde o final da década de 70, e que somente em 80 um caso de AIDS foi reconhecido em São Paulo. Segundo E. Castilho e P. Chequer (1997) o não registro desses casos em 80 e 81 pode ter se dado devido à subnotificação, ao não-diagnóstico ou mesmo a não-ocorrência de casos, uma vez que a epidemia do HIV se encontrava em seu curso inicial.
Posteriormente, a epidemia foi se expandindo por todas as outras regiões. Todavia, apesar dos registros dos casos já estar se dando em todas as unidades da Federação, até o presente momento a grande maioria das ocorrências ainda se concentra na Região Sudeste, com uma notificação no período de que vai de 80-87 de 85%, e de 69% dos casos informados ao Ministério da Saúde no período de 94-96 a fevereiro de 97 (Ministério da Saúde 1997). Os Estados do Rio de Janeiro e de São Paulo no período de 94-96 a fevereiro de 97 ainda detêm 67% do total das notificações no país (E. Castilho e P. Chequer, 1997).
Hoje, é o seguinte o quadro epidemiológico do HIV/AIDS no Brasil. Desde o início da epidemia, 2.814 municípios já notificaram pelo menos 1 caso de AIDS à CN DST/AIDS até três de maio de 1998. De 1980 a 1986, 78% dos casos foram notificados por municípios com mais de 1 milhão de habitantes. Do 3º para o 4º período, nos municípios com até 50 mil habitantes. Após 1986, a razão de sexo foi sempre maior para os municípios com mais de 1 milhão de habitantes (Ministério da Saúde, 1998 p.5 ).
A área geográfica dos municípios com pelo menos um caso de AIDS, segundo o período de diagnóstico, é a seguinte: até 1986, 209; até 1989, 800; até 1992, 1.544 e; até 1998, 2.814 municípios, o que nos leva a concluir que a progressão da epidemia no Brasil, foi significativa nesses últimos 18 anos. (Boletim Epidemiológico, Ministério da Saúde/ CNDST/AIDS, 1998). Até o final do 2º semestre de 1998 foram diagnosticados 14.532 casos entre adultos e crianças. A unidade federada como o maior número de casos é São Paulo, com 70.211 casos acumulados desde o início da epidemia; e o segundo é o Rio de Janeiro, com 20.906 casos. O grupo etário mais acometido pela AIDS é o grupo de 13 a 44 anos de idade, com 82% do total dos casos. Das notificações referentes ao grupo etário de 13 a 29 anos, isto é, adolescentes e adultos na idade mais jovem encontramos 33% de homens e 38% de mulheres com AIDS. Quanto ao número de óbitos por AIDS, 73.360 casos já tiveram o óbito informado ao sistema de vigilância epidemiológica, ou seja, 50,5% do total de casos conhecidos (Ministério da Saúde/Boletim Epidemiológico, 1998, 5,6).
A epidemia de AIDS no Brasil teve três fases importantes na sua evolução: 1- a fase inicial, caracterizada pela infecção entre homo/bissexuais masculinos principalmente, e por um alto nível de escolaridade dos pacientes com AIDS; 2- a segunda fase caracterizada pelo incremento de casos devido à transmissão por uso de drogas injetáveis, com a conseqüente diminuição do grupo etário e uma disseminação entre pessoas que têm prática heterossexual; 3- a fase terceira veio a partir da acentuação da tendência da disseminação do HIV e da AIDS entre os heterossexuais, especialmente as mulheres, e com o avanço espacial da epidemia para municípios novos, bem como o aumento percentual de pacientes, e entre pessoas de escolaridade mais elementar (Ministério da Saúde/Boletim Epidemiológico, 1998.p. 6)
As políticas públicas inicialmente elaboradas no Brasil para a epidemia de AIDS fazem parte da Programação global da OMS (Organização Mundial de Saúde) que tinha os seguintes objetivos: a prevenção da transmissão por sexo, sangue, via perinatal, redução do impacto do HIV nas pessoas, grupos e sociedade e fazer avaliação do Programa Nacional de AIDS. (Teixeira, 1997).
As primeiras iniciativas e articulações para elaboração oficial dos referenciais éticos, políticos e legais que deveriam influir nas determinações das políticas públicas para AIDS vieram primeiro do Estado de São Paulo, sendo depois incorporados pelos outros Estados. A partir da constituição de um grupo de trabalho composto de técnicos de áreas diversas da saúde: médicos, sanitaristas, infectologistas, especialistas de laboratórios e da área social. Assim, todos esses referenciais bem como as estratégias programáticas correspondentes, foram traçadas, e posteriormente adotadas por todas as unidades federadas do país.
Somente a partir dessas primeiras iniciativas é que os grupos organizados como o Grupo Gay “SOMOS” e o “OUTRA COISA,” e um grupo de senhoras da sociedade que fazia arrecadação de bens e doava para pacientes com hanseníase, e um grupo de militantes pelos direitos dos homossexuais começavam a participar das discussões sobre a problemática da epidemia de AIDS e a ajudar na elaboração das ações pragmáticas de diagnóstico de prevenção e tratamento.
Subseqüentemente, outras instituições foram se envolvendo no trato da epidemia: as universidades, através do Instituto de Medicina social do Rio de Janeiro (especialmente a área clínica e biomédica), o Conselho Regional de Medicina de São Paulo, a Igreja Católica (através do ISER), e as organizações não governamentais, das quais trataremos em seguida. Foram elaborados dois programas para enfrentamento da epidemia de AIDS no Brasil. O primeiro foi o Programa Nacional de Controle e Prevenção da AIDS em 1985, no Estado de São Paulo; o segundo foi o Programa Nacional de DST/AIDS do Ministério da Saúde, que continha no seu bojo as ações constitutivas do Programa Mundial da OMS. O quadro cronológico da AIDS no Brasil, tomando como referência as diretrizes do Programa Nacional de Controle e Prevenção (do Estado de São Paulo) e do Programa Nacional de DST/Aids do Ministério da Saúde é aproximadamente a seguinte:

Quadro 1

CRONOLOGIA DA AIDS NO BRASIL


Ano Ações
1982
1983
1984
1985


1986





1987

1988 Primeiro caso de AIDS no Brasil.
Diagnosticado o primeiro caso de AIDS na mulher brasileira (em São Pulo).
Início das discussões sobre a AIDS no Estado de São Paulo
Criado o Programa Nacional de AIDS de São Paulo através da portaria 236.12.5.85
Aprovado pelo conselho Regional de Medicina que obriga os médicos legistas a fazer necropsia
Em pacientes falecidos com AIDS na instituição.
Organizada o GAPA – Primeira Organização Não Governamental/ AIDS do país
Começa a ser difundido no país o Teste para o HIV/AIDS
A Assembléia Legislativa aprova a Lei que tornava abrigatória a triagem sorologia para HIV em todo o sangue a ser transfundido no Estado de São Paulo (Lei n.º 5/9 de 20.6.86)
Publicada a portaria n.º 236/86 do Ministério da Saúde que consolidou e deu unidade frente às ações frente ao HIV/AIDS nos serviços de saúde.
Instituída a Comissão Nacional de Controle da SIDA, que inclui representantes do Ministério da Educação.
A Comissão Nacional de Controle da SIDA através da portaria 437, de 22.7.88
Inclui representantes da Ordem dos Advogados do Brasil, do Ministério do Trabalho, da Justiça, várias Universidades e quatro Organizações não governamentais (ABIA, GGB, Associação Brasileira de Entidades de Planejamento Familiar, Centro Corcini de Investigação Imunológica).
Foi criado, dentro da estrutura do Ministério da Saúde o Programa Nacional de DST/AIDS.
A OMS institui o 1O de dezembro, “Dia Mundial de Luta Contra a AIDS”
Aprovado pelo Congresso Nacional a Lei 7.670.88 que estende às pessoas com AIDS os benefícios já previstos para portadores de doenças incapacitantes ou terminais, como levantamento do Fundo de Garantia por tempo de Serviços (FGTS), auxílio-doença, pensão e aposentadoria sem período de carência.
Torna-se obrigatória a triagem sorológica para o HIV em todo o território nacional, através da Lei 7.649, de 25.1.88
Fonte: pesquisa AIDS, Gênero, Exclusão – na redefinição da identidade dos portadores.

2.2- AS ONGs/AIDS NO BRASIL

A instauração da AIDS no mundo veio requerer respostas de todos os segmentos da sociedade. Por ser uma epidemia vastamente relacionada aos padrões socioculturais específicos: homossexualidade, bissexualidade, heterossexualidade, compartilhar de seringas (para uso de drogas injetáveis), as rotas turísticas, o sangue transfundido e seus hemoderivados, fez-se necessário de imediato o congraçamento das forças sociais fazendo face à epidemia. Tendo sido identificada em primeira instância nos EUA e conhecida pela comunidade médica, por um período de tempo curto, como “Imunodeficiência Relacionada aos Gays”, foi de lá que surgiram os primeiro movimentos populares em resposta à AIDS. Esses movimentos, em princípio, não eram organizações institucionalizadas, devidamente sancionadas, mas, representavam a força de alguns seguimentos da sociedade civil: as Organizações de Base Comunitárias (OBCs) (D. Altman, 1995).
Uma dessas primeiras organizações a se instituir nos EUA foi a Gay Men’s Health Crisis (GMHC) (Crise na Saúde dos Homossexuais). O principal objetivo dessa comunidade ao se organizar era a pesquisa e a educação. O seu desenvolvimento foi muito rápido, e a organização teve que passar a atender uma demanda muito grande com uma variedade de serviços à população alcançada pela AIDS fora das suas previsões (Idem).
A trajetória das organizações não governamentais/AIDS tem se configurado ao longo dessas duas décadas em lutas constantes junto ao poder público e privado por atendimentos aos portadores do HIV/AIDS. As questões referentes à aquisição dos medicamentos, aos benefícios da previdência social, à aposentadoria, ao atendimento jurídico, ao trabalho, ao tratamento médico de qualidade e, em muitos casos, à reintegração na vida familiar, e tantas outras mais, fazem parte da agenda destas instituições. Afora isso, tem-se ainda que vivenciar os problemas internos delas próprias no que tange aos aspectos de manutenção financeira, de recursos materiais e humanos, para o seu funcionamento.
As Organizações Não-Governamentais/AIDS surgiram no Brasil em meados da década de 80. Nesse período, vários casos de AIDS estavam sendo notificados em praticamente todo o território nacional, e com muito mais rapidez, apesar de o vírus ser considerado “estrangeiro”. A sociedade brasileira ainda se mantinha indiferente às ocorrências. Segundo Jane Galvão (1997,77) a AIDS foi descrita como “bizarra”. Era uma doença dos Gays norte americanos e o Brasil não tinha nada a ver com ela, mas mesmo assim ela continuou proliferando aqui.
“As reações da sociedade brasileira são, neste período, tímidas e defensivas. As primeiras declarações provêm de integrantes dos grupos denominados de ‘emancipação homossexual, ’ localizados principalmente no eixo Rio de Janeiro e São Paulo, e mencionavam o ataque das forças reacionárias e do terror desmedido utilizado para descrever a doença e os seus efeitos." A epidemia da AIDS será sempre marcada por seu caráter internacional, demandando sempre uma abordagem global (Altman 1995).

A AIDS não era reconhecida no país como uma doença local, que tivesse aqui as suas origens, mas sim como uma epidemia do outro, que chegou aqui, mas que não fazia parte daqui. As representações sociais brasileiras da AIDS eram transculturais, negando o reconhecimento do fenômeno como algo de origem nacional.
Segundo Galvão (ibid.), apesar de os brasileiros estarem adoecendo com a AIDS, esta continuava tendo o seu lado estrangeiro aqui no Brasil, e essa qualificação de “estrangeira” foi mantida aqui por meio da separação feita da “população em geral” dos “grupos de risco,” o que num primeiro instante parecia natural, considerando-se o crescente percentual de casos diagnosticados à época.
Em todo o mundo as primeiras representações que se construíram sobre a AIDS foram de interrogação: o quê é? Como surgiu? Quem é o responsável? Quem são os afetados? Para depois serem de negação: eu não tenho isso; eu não sou culpado por isso. Perpassou um sentimento de “inquietação” e de “medo” entre as pessoas que tentaram encontrar respostas, e por não encontrá-las, jogaram a responsabilidade nos outros.
No caso do Brasil não foi diferente de outras sociedades: a AIDS, como já citamos acima, era a doença de uma fatia pequena de pessoas que fazia turismo entre o Brasil e Nova Iorque, dentre outros locais, que por seu estilo de vida “exótico” haviam se infectado com o vírus dos gays norte-americanos (Galvão, 1997).
As representações transculturais da AIDS são discutidas por Hèléne Joffe (1995), em sua pesquisa “Eu não, o meu grupo não”: Representações Sociais transculturais da AIDS. A autora se defronta com essa realidade da “negação do fenômeno” por parte de um grupo de pessoas por ela investigadas: homossexuais, bissexuais, heterossexuais, ao tentarem responsabilizar sempre “o outro” pelo surgimento da doença. Vejamos, nesta direção, o depoimento de um homem, negro, sul-africano, heterossexual, tomado por essa autora:
“Como eu ouvi dizer, ela começou na Inglaterra... Ela começou entre um macaco e uma pessoa depois de uma relação sexual com o macaco... depois que ela teve relações sexuais com o macaco ela não se lavou e procurou a sua parceira. Então eles mantiveram relações. Então a parceira não se segurou, foi e teve relações com outro, e assim foi que ela se espalhou.” (JOFFE, 1995:308).

Segundo Joffe, as pessoas estiveram sempre buscando culpados para o fenômeno fora do seu contexto, e se punham distantes da possibilidade do seu envolvimento pessoal com a questão. A AIDS foi sempre posta como uma realidade da qual todos se achavam distantes. Na forma de ser notificada, o “direito” de pertencer a ela foi dado apenas aos “grupos de risco”. Apenas eles se encaixavam no perfil traçado pela equipe de médicos e pesquisadores da AIDS. Sendo posta a distância de todos os que estavam fora desses “grupos de risco”, o questionamento de quem responderia por esse fenômeno tão sui generis, começou a aparecer. Todos foram veementes em dizer “eu não”, “o meu grupo não” (Cf. JOFFE, 1995).
Segundo essa autora, não era dos negros, nem dos brancos, nem dos casados, nem dos solteiros, nem dos heterossexuais. Quem restou no cenário? As populações emergentes, de comportamentos desviantes: os homossexuais (gays masculinos), as prostitutas, os viciados em drogas, pessoas “promíscuas”, “culpadas”. Foi sobre elas que incidiu a responsabilidade: um preço haveria de ser pago. No início da divulgação, a realidade da AIDS prescindia a iminência da morte. Esse seria o preço a ser pago (PAIVA, 1992).
No Brasil, as primeiras organizações não-governamentais surgem em meados da década de 80 em São Paulo e no Rio de Janeiro. A primeira ONG/AIDS organizada foi o GAPA (Grupo de Apoio e Prevenção à AIDS), em 1985 no Estado de São Paulo. Seguidamente fundaram-se a ABIA (Associação Brasileira Interdisciplinar da AIDS), fundada no Rio de Janeiro em 1986; o Grupo Pela Vida (pela valorização, integração, e dignidade do doente de AIDS) fundado no Rio de Janeiro, em 1989; o Projeto ARCA (Apoio Religioso Contra a AIDS) do ISER (Instituto de Estudos da Religião) que já existia desde a década de 70 e decide apoiar a causa da epidemia da AIDS; a GEMPAC (Grupo de Mulheres Prostitutas da Área Central), organizado em maio de 1990; a Organização GESTOS (Soropositividade, Comunicação, Gênero) organizada no Recife/PE, 1993; e a a Organização ASAS (Associação de Ação Solidária) organizada no Recife/PE, 1992. Neste período também já existiam o Grupo Dialogay (de Sergipe) e o GGB (Grupo Gay da Bahia), e outras que foram se organizando em todo o país (Galvão, 1997, Granjeiro, 1994) ao longo dos anos que se seguiram.
Estas organizações não-governamentais tinham como um dos objetivos principais promover as articulações junto aos órgãos governamentais e a sociedade civil, reivindicando a implementação de políticas sociais e de saúde para controle e prevenção da epidemia de AIDS, bem como denunciar os estigmas, os preconceitos e a exclusão a que estavam sendo postas as pessoas infectadas (Granjeiro, 1994; Galvão1997, Altman,1995).
A partir da organização dessas instituições foram articulados os Encontros Nacionais das Pessoas Portadoras do HIV/AIDS. Estes Encontros foram significativos para aprofundamento e entrosamento dos grupos emergentes que começavam a se organizar para fazer face à epidemia e das articulações entre as instituições governamentais e não-governamentais. A partir desses eventos é que as políticas sociais de intervenção foram sendo mais definidas, elaboradas e implementadas. Segundo Galvão (ibid.), os Encontros nacionais das ONGs/AIDS tornaram-se o lugar da afluência da diversidade, visto que representações de vários segmentos sociais passaram a interagir engajadas na luta contra a AIDS, ficando notório o valor dos mesmos como o espaço de debates, discussões, e comunicação entre as pessoas portadoras e as não portadoras.
As organizações não-governamentais, para se manterem, necessitaram buscar recursos financeiros junto às agências internacionais. Por seu caráter essencialmente filantrópico, essas instituições tiveram, e ainda têm até os dias atuais, dificuldades em se manterem financeiramente. Desse modo, contaram com o apoio do Banco Mundial, intermediado pelo Programa Global de AIDS (PGA) da OMS (Organização Mundial de Saúde) que teve início em 1987 e atua em parceria com ONGs/AIDS internacionais (ibid.).
As ONGs/AIDS no Brasil, após quase duas décadas de epidemia de AIDS passam por mudanças significativas nas suas bases estruturais: campo de atuação junto aos portadores e no seu conteúdo programático: estruturas organizacionais Nas suas bases estruturais, as ONGs/AIDS se vêem atualmente às voltas com a necessidade de redefinição de suas políticas assistenciais junto à comunidade de portadores a que dão assistência. Galvão (ibid., p 96) diz que:
“O fato de a AIDS passar a ser encarada como uma doença que veio para ficar leva a que as ONGs deixem de atuar como ‘bombeiros’ e passem a trabalhar, cada vez mais, na área de prestação de serviços e elaboração de projetos específicos de intervenção.”

A nosso ver, as bases coordenadoras dessas instituições se encontram acuadas pelas mudanças muito rápidas que vêm ocorrendo nos modos de a AIDS se propagar, visto que atualmente não é mais possível ignorar a sua existência. Outro fator concerne ao fato de essas instituições necessitarem de infra-estrutura mais estável, mais sólida dando condições aos seus colaboradores de contribuírem de modo integral com suas atividades, o que até hoje ainda não ocorre.
Outro aspecto nessa questão está diretamente ligado às novas configurações da epidemia. A partir do uso do coquetel os portadores vêm alcançando nos últimos anos mais estabilidade na saúde, de modo que projetos políticos de reinserção dessas pessoas no mundo do trabalho se fazem necessários, melhorando a sua qualidade de vida, por um lado. Por outro lado, tem-se que considerar a reconfiguração da epidemia que passa a alcançar as classes sociais menos favorecidas, e a zona rural, antes distante dessa realidade.
Portanto, as ONGs/AIDS começam a se deparar com a necessidade de redefinirem os seus quadros: político-financeiros, institucional-assistencial, e social.
A entrada das ONGs/AIDS no cenário brasileiro mudou substancialmente a face da epidemia de AIDS no país. Atualmente elas se configuram no espaço social in lócus onde as ações podem ser implementadas para a continuação da intervenção junto à epidemia.
Em Pernambuco, a AIDS foi diagnosticada no ano de 1983, com um caso. Conseqüentemente foi sendo notificada sob o mesmo prisma com que estava sendo em todo o país. É o seguinte o número de casos de AIDS em Pernambuco até 1998: menos de um ano, 16 casos (0,7% das ocorrências notificadas); entre um e quatro anos, 20 casos (0,8% das notificações); entre cinco e nove anos, 14 casos (0,6% do total do total); entre 10 e 14 anos, 07 casos (0,3% das notificações); entre 15 e 19 anos, 25 casos (1,0% do total); entre 20 e 34 anos, 1.287 casos (52,6% do total de notificações); entre 35 e 44 anos, 731 casos (29,9% do total de notificações); entre 45 e 49 anos, 147 casos (6,0% das ocorrências); de 50 anos em diante, 197 casos (8,1% do total). O número de casos de adolescentes com AIDS no Estado (de acordo com os municípios) nos últimos 10 anos: Recife - 19 casos de jovens doentes foram registrados, o equivalente a 44,19% dos casos da doença observados em Pernambuco; Jaboatão - 4 casos registrados: um em 1987, outro em 1988 e dois em 1996. O município acumula, até agora, 9,30% dos casos registrados no Estado; Paulista e Itapissuma - 3 casos em cada município. Em Paulista um caso em 1991, outro em 1993 e mais um em 1997. Em Itapissuma, o primeiro deles em 1990 e os outros dois em 1996 e 1997. Cada município possui 6,98% do total de casos; Caruaru e Cabo, dois casos em adolescentes em cada município. Em Caruaru um caso identificado em 1989 e outro em 1998. Já no Cabo, um caso também em 1989 e outro em 1996. Uma média de 4,65% de resultados positivos registrados em Pernambuco.
Na cronologia da AIDS em Pernambuco, visualizamos o seguinte: casos de AIDS registrados no país, entre jovens de 10 a 19 anos de idade desde 1980: 3.307 casos. Primeiro registro da doença no Estado de Pernambuco - em 1983. Em 1987 registrou-se o primeiro caso de mulher positiva em Pernambuco. O número de pessoas contaminadas em Pernambuco desde o surgimento da AIDS é de 3.333, sendo 2.667 homens desenvolvendo a doença, 666 mulheres que contraíram o vírus, 1.817 pessoas que já morreram em decorrência de AIDS, 225 homens contaminados pelo vírus somente este ano e 120 mulheres que contraíram o vírus em 1998. A característica das vítimas (1995-1998) é a seguinte: 40,6% são heterossexuais; 32,7% são homossexuais; 17,7% têm comportamento bissexual; 4,3% são crianças que adquirem a doença através do sangue da mãe (perinatal); 2,5% são usuários de drogas injetáveis; 2,2% adquiriram o vírus através de transfusão de sangue; e 0,1% são hemofílicos.
Em Recife os locais de referência que atuam com a AIDS em caráter oficial são nove estabelecimentos, a saber: Secretaria de Saúde do Estado de Pernambuco/Diretoria de Epidemiologia e Vigilância Sanitária – Coordenação Estadual DST/AIDS; Hospital Universitário Oswaldo Cruz; Instituto Materno Infantil – IMIP; Hospital Barão de Lucena (atendimento a gestantes/HIV); Hospital das Clínicas, Centro de Orientação e Aconselhamento em DST/AIDS – COAS/Recife, Centro de Orientação de Apoio Sorológico – COAS/Olinda, e Centro de Orientação e Apoio Sorológico – COAS/Caruaru, Centro de Orientação e Apoio Sorológico-COAS/Garanhuns.
As Organizações Não-Governamentais (ONG’s) que atuam expressivamente com a epidemia de AIDS são: a ASAS (Associação de Ação Solidária), criada em 1992, que atua na intervenção e prevenção através de uma equipe multiprofissional, e atende também aos familiares; da Organização GESTOS, também criada em 1993, para atuar coma intervenção, a prevenção e a assistência jurídica; a Organização Sociedade Viva Rachid, que dá apoio psicossocial para as mães que perderam filhos por morte de AIDS. Temos também, a Rede de Portadores do HIV-AIDS do Estado de Pernambuco, que promove a interação social entre os mesmos, discutindo a problemática da sua condição de existência, mas, não é uma representação institucional; o Centro de Apoio aos Doentes Terminais – Cadoter – que atua assistindo pessoas doentes terminais; o Comitê de Ação da Cidadania Contra Fome e a Miséria, que também entrou na luta contra a AIDS.

As organizações não-governamentais que atuam com a AIDS no Recife, não se diferenciam das outras existentes no país. Todas enfrentam os mesmos problemas em relação a financiamentos para os seus projetos, e todas se caracterizam por sua atuação junto aos governos reivindicando dessas ações mais eficazes para a prevenção e o tratamento dos portadores. A ONG ASAS e a Gestos são duas instituições que vêm ao longo destes últimos cinco anos desenvolvendo atividades relevantes dentro da questão do HIV/AIDS. Mesmo contando com um apoio elementar dos órgãos governamentais e tendo um financiamento de entidades estrangeiras reduzido, estas instituições não deixam de desenvolver os seus trabalhos em favor das pessoas portadoras de AIDS e de seus familiares.
A nossa pesquisa ao desenvolver-se nestas organizações procurou fazer um resgate do trabalho desenvolvido pelas mesmas buscando identificar nos seus conteúdos pedagógicos a coerência do sentido estrutural e organizacional, da atuação participativa dos profissionais nos grupos de ajuda mútua com os portadores. Entrevistamos os profissionais de psicologia que assistem aos portadores para ver, a partir dos seus relatos, os modos como os conteúdos pedagógicos eram veiculados e apreendidos pelas pessoas assistidas. Dois psicólogos e uma psicóloga, dos quais dois são da ONG ASAS e um da ONG GESTOS, que identificamos socialmente:
Profissional um
Gladston Lima, 29 anos, brasileiro, solteiro, graduado em psicologia e pós-graduando em Antropologia pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Trabalha na ONG GESTOS exercendo a função de psicólogo há um ano e meio.

Profissional dois
Maria Lúcia Soares, 34 anos, brasileira, solteira, graduada em psicologia pela Faculdade FACHO – Faculdade de Ciências Humanas de Olinda - PE, com especialização em Hospitalar e Domiciliar, e Psicologia Transpessoal. Trabalha na ONG ASAS há dois anos, exercendo a função de psicóloga
Profissional três
Everton Marinho Pedrosa, 34 anos, brasileiro, casado, católico, graduado em psicologia pela FAFIRE - Faculdade de Filosofia do Recife, com especialização em psicanalítica. Trabalha na ONG ASAS como psicólogo há um ano.

No quadro que se segue procuramos demonstrar a caracterização organizacional destas instituições. Neste quadro destacamos três itens relevantes que caracterizam as ONGs em perspectiva: 1- nome da instituição, 2- trabalho que desenvolve 3- população assistida. Este último será tratado na sessão a seguir. Na definição dos nomes destas ONGs, percebe-se uma diferença que se expressa nos seus conteúdos pedagógicos que norteia as suas ações junto aos portadores a partir do que estes externam nas suas falas e posturas.

Quadro 2
CARACTERIZAÇÃO DAS ORGANIZAÇÕES NÃO-GOVERNAMENTAIS

INDICADORES DE IDENTIFICAÇÃO DAS ONGS ASAS
(ASSOCIAÇÃO DE AÇÃO SOLIDÁRIA) GESTOS
(SOROPOSITIVIDADE, COMUNICAÇÃO, GÊNERO)
Tempo de organização
05 anos 04 anos
Trabalhos que desenvolvem
ou promovem. Apoio psicossocial aos portadores e familiares Assistência psicossocial e jurídica aos portadores e familiares
Número de profissionais que trabalham 08: psicólogos, assistente social, agente administrativo, outras funções 10: psicólogos, advogado, sociólogo, assistente social, antropólogo, outros
Sustento financeiro Projetos financiados por instituições internacionais, nacionais, e doações Projetos financiados pelo Ministério da Saúde, financiamento internacional, e outros
Relação com Instituições públicas: federal, estadual, municipal Relação boa, de parceria Relação boa de parceria, mas sempre reivindicando
Tipo de pessoas que atendem Homens e mulheres Homens e Mulheres
Número de portadores que
Atendem 45 portadores e algumas de suas famílias 50 portadores e algumas de suas famílias
Fonte: Pesquisa AIDS, Gênero, Exclusão – na redefinição da identidade dos portadores, com base nos depoimentos dos profissionais de psicologia das duas ONGs/AIDS pesquisadas.

A Sigla ASAS significa Associação de Ação Solidária. Tem como missão principal (partindo da fé cristã) apoiar as pessoas que vivem com HIV/AIDS, seus familiares e amigos. Lutar contra a discriminação, o preconceito e no resgate da cidadania, em parceria com outras ONGs e outras instituições, incluindo as governamentais. Desenvolve trabalhos psicoterápicos e sociais com grupos de portadores e também individuais. Atende especificamente um grupo de mulheres. Faz distribuição de cesta básica e vale transporte. Dinamiza as atividades com os portadores produzindo peças de serigrafia e cultivo de hortaliças. Dão assistência a 45 portadores e 15 familiares. Realiza Encontros culturais como work-shopping, palestra sobre temas específicos com pessoas especializadas, e Encontros periódicos recreativos.
A ONG ASAS se consolida sob princípios religiosos. Essa consolidação é notória pelo modo como a mesma foi organizada. Segundo o psicoterapeuta Everton Pedrosa,
“A ASAS nasceu da união do mesmo pensamento de um grupo de pessoas amigas, religiosas (que de início tinham um pensamento religioso), para lutar pelos direitos dos portadores do HIV/AIDS. Um grupo de amigos vivendo a mesma problemática, que outras pessoas também estavam passando. Pessoas que não tinham nenhum grau de reconhecimento da sua cidadania para lutar pelos seus direitos de cidadãos”.

Analisando essa questão dos princípios norteadores da ONG ASAS, fica notório que esta ao se estabelecer, consolida suas idéias organizacionais na fé cristã, na intenção de fazer valer os princípios da ação solidária através da conscientização da cidadania, mas sob uma base religiosa. Como explica a psicoterapeuta Lúcia Soares,
“A ASAS é uma instituição que, ela tenta, e, procura ser bem abrangente. Não que ela tenha especificamente uma predileção pelos financiadores religiosos. O que acontece é que, quando o grupo se reuniu e pensou em criar uma casa de apoio, que pudesse dar o apoio às pessoas vivendo com o HIV e com AIDS, a maioria dessas pessoas era de um grupo religioso específico. E aí o que acontece? Eram grupos religiosos que tinham acesso a determinadas instituições religiosas e que também acreditavam poder contar com essas instituições. Tanto é que na missão da ONG ASAS uma das coisas que está bem clara é a fé cristã. Uma das coisas que objetiva a ASAS não é especificamente uma doutrina, mas é essa fé cristã”.

No surgimento da AIDS a instituição religiosa fez sua manifestação procurando desenvolver trabalhos junto aos portadores. Na França a Comissão social do Episcopado Francês julgou que era da sua responsabilidade intervir no assunto. Em 1987 essa Comissão declarou que cria, em nome do Evangelho, ser do seu dever se expressar sobre o que estava acontecendo em relação ao surgimento da epidemia da AIDS. Segundo essa organização, todos são membros de uma família humana, universal, conclamada para viver e praticar a solidariedade. Convidava, então, os católicos a vencerem os seus medos e a aprenderem a viver com os outros os respeitando (A. Rounet, 1996).
No Brasil, a igreja católica, a protestante e outras comunidades religiosas se pronunciaram também com um sentimento similar ao da França para tratar da AIDS. Em novembro de 1995 organizou-se um encontro sob o nome de A Primeira Consulta Sobre AIDS e Igrejas, em São Paulo, composto por representantes religiosos e para-religiosos para debater o surgimento da epidemia de AIDS no país e traçar um plano de ação para enfrentamento.
As idéias que orientavam o Encontro diziam respeito ao fato do silêncio das igrejas em relação à epidemia até aquele momento, e visto que pelo fato da epidemia ter se tornado uma doença que alcançava a todos independentemente de credos religiosos, cor, raça, condição social, orientação sexual, se fazia necessário um esforço coletivo para enfrentar a situação, que se quisessem ou não, era de todos. As igrejas cristãs, segundo M. N. Cunha (1995, p. 3), precisava definir a sua posição em relação à Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (AIDS):
“As Igrejas Cristãs vêem-se confrontadas com os duros desafios impostos pela síndrome transformada em epidemia, que já não escolhe alvos ou grupos de risco, fazendo-se presente em famílias, e daí chegando aos bancos das igrejas”.

A questão, segundo Cunha, era (idem)

“Como enfrentar pastoralmente essa questão? Como acompanhar os membros de igrejas e lideranças hoje infectados pela síndrome? Como prestar solidariedade aos portadores do vírus, doentes ou não, que sofrem os mais variados preconceitos e em cuja vida já não há mais esperança?”

De acordo com Galvão (1997), a resposta religiosa no país, face ao surgimento da epidemia no Brasil veio tardiamente. Como outras instituições, no início da epidemia todos estiveram silenciosos, omissos. Em princípio, destacam-se a igreja católica e a pentecostal ao se posicionarem frente à AIDS como uma doença que representava a decadência moral dos indivíduos. A Igreja Católica, pelo acesso que tem à grande imprensa, foi sempre muito ouvida ao se manifestar sobre o assunto através de seus representantes oficiais . “Como os demais integrantes da sociedade civil, os religiosos primeiro trataram a AIDS como algo restrito ao mundo da moral para, mais tarde, acolhê-la enquanto uma linha de atuação relevante e digna de ser desenvolvida” (idem, p. 112).
De acordo com Galvão (ibid.), C. Ferreira (op. cit.), A. Granjeiro (op. cit.), não se deve estranhar a demora da instituição religiosa em se manifestar em relação à AIDS, assumindo-a como um assunto de sua responsabilidade. Em princípio, os fundamentos doutrinários das igrejas cristãs não se articulavam às problemáticas da vida secular. Somente a partir das representações de grupos religiosos contestatórios das doutrinas religiosas e do isolamento das igrejas face à realidade sociocultural, política e econômica da vida contemporânea, emergentes na sociedade moderna, que promoveram mudanças significativas e efetivas nas práticas religiosas, tais qual o Movimento Carismático no catolicismo, década de 70, o Movimento da Igreja Universal do Reino de Deus de renovação espiritual, década de 80, o Movimento Gospel na igreja batista e presbiteriana, década de 80 e 90, o Movimento da Nova Era, onde se inserem os grupos Esotéricos, dentre muitos outros, foi que a Igreja Católica buscou fazer um novo reajuste entre a igreja e o mundo secular (Lepargneur, 1987), abrindo espaço para que o grupo emergente, contestatório, já existente, se expressasse.
A partir dessa nova configuração religiosa, as igrejas abrem os espaços para que as representações dos grupos religiosos se expressem no seu meio e se unam ecumenicamente para o enfrentamento da epidemia de AIDS, numa nova configuração religiosa para a fé cristã, a solidariedade, a caridade, e o amor (idem). Sendo nesse contexto é que se instaurou a ASAS. Buscando atender a um grupo específico de pessoas portadoras de HIV e com AIDS tanto no campo material, abrangendo a cultura, a política e a saúde, como no campo subjetivo, estimulando o fortalecimento espiritual através da fé cristã.
Segundo os psicoterapeutas entrevistados Lúcia Soares e Everton Pedrosa, a ASAS não faz proselitismo dos fundamentos da fé religiosa. Não é esse o seu objetivo; mas ela, pela sua própria base estrutural, se utiliza desses princípios para fortalecer os seus objetivos de atendimento aos portadores. A ética valorativa do bem estar social, da ação social, da solidariedade sendo garantida aos portadores, lhes dará sustentação física e emocional para a luta política na busca da cidadania, a garantia dos seus direitos e o cumprimento dos seus deveres.

“... é a partir da fé cristã que existe a motivação para esse tipo de trabalho, para essa ação de solidariedade” “É interessante que, nas várias pessoas que conheci nesse tempo que lido com a questão do HIV/AIDS, para que exista o apoio psicossocial, o acompanhamento sistemático de terapia e tudo o mais, assim...., percebe-se a necessidade desse outro lado, de um certo apoio, que eu chamo, de apoio espiritual”. (fala da psicóloga Lúcia Soares).

Do mesmo pensamento é o psicoterapeuta Everton Pedrosa,
“como a ASAS parte de um fundamento religioso porque ela entende que a solidariedade e a religião fortificam, sedimenta a fé das pessoas. E eu acho que é isso que permite a grande diversidade de pessoas que a gente recebe aqui, e o que facilita o próprio trabalho, manterem um cunho, ou exclusivamente religioso, ou exclusivamente político partidário, e essa questão de agregar tudo, sem dúvida, na minha maneira de ver, facilita a compreensão realmente das pessoas que vêm aqui.”

Notamos, a partir desses depoimentos dos profissionais que a questão espiritual é significativa para as pessoas doentes de AIDS, e que esse viés religioso que fundamenta a ASAS, é importante para o trabalho que ela realiza junto a eles.
O segundo item que destacamos na caracterização da ONG ASAS é o tipo de atendimento prestado aos portadores: apoio psicossocial através dos grupos de ajuda mútua e apoio institucional: mediação entre os portadores e os órgãos governamentais, massagens terapêuticas para tratar questões do corpo, e apoio material: trabalhos de serigrafia e cultivo de hortaliças. Todos esses atendimentos são relevantes para os portadores e seus familiares, todavia, o apoio psicológico feito através dos grupos de ajuda mútua e as massagens terapêuticas se destacam fazendo a real diferença na vida das pessoas portadoras.
Segundo a psicoterapeuta Lúcia Soares os grupos de ajuda mútua vão além da sua característica de grupo apenas psicoterapêutico, “... ele é terapêutico, mas acaba também sendo um grupo operativo”. “A finalidade do grupo é que as pessoas que estão vivendo como o HIV/AIDS tenha um espaço onde possam trocar experiências, colocar suas queixas, falar de seus sentimentos, dentro do possível se apoiando uns aos outros”. O que se torna significativo nos grupos de ajuda mútua, nessa experiência com os portadores do HIV/AIDS é uma rede de interação que se estabelece entre as populações soropositivas, onde as informações são repassadas, as experiências são somadas efetuando mudanças. Segundo a psicoterapeuta Lúcia soares:
“Pessoas que são antigas na instituição, ou que têm uma história de vida diferenciada, são mais antigas, geralmente recebem com um discurso, uma fala animadora os que estão chegando, que estão com um diagnóstico mais recente e por isso estão passando por dificuldades emocionais, e aquele outro, ou outros, que já está numa outra fase, num outro momento, de pelo menos lidar melhor com os sentimentos. Então, esse é o objetivo geral do grupo de ajuda mútua”.

Segundo Eugène Enriquez (1997), um grupo constitui um lugar privilegiado para a compreensão dos fenômenos coletivos; portanto, ele é um projeto comum, o que significa certamente que ele tem uma idéia central, um sistema de valores interiorizados por todos os seus componentes. Somente assim um projeto grupal pode ser implementado dinamicamente. A operacionalidade do grupo de ajuda mútua é real quando ele consegue integrar os participantes na mesma dinâmica, desenvolvendo o sentimento de pertença. É o que Enriquez (idem) denomina de “‘o momentum’ da comunidade reconhecida”. “Ö grupo se apresenta então para todos (para a organização e para os seus membros) como um lugar de refúgio (um ‘nicho ecológico’ segundo o termo cunhado por Davignoud) e como sítio de todos os perigos”.
O psicoterapeuta Everton Pedrosa entende que os grupos de ajuda mútua são espaços onde são trabalhados os sentimentos, as emoções. Assim, ele diz que
“Essa experiência mútua vai permitindo ao indivíduo, enquanto ser que vem se mostrando psicologicamente se fortalecer na sua emotividade, na sua afetividade, um poder de se integrar de maneira melhor, politicamente e socialmente, mesmo porque, ele já consegue refletir num espaço muito mais abrangente, a sua coletividade. Ele sai um pouco da sua individualidade, que é essa que está reprimida, desgastada, fragilizada, e consegue com esse suporte grupal, é..., ir mais além, sair um pouco mais dele e retomar questões mais do coletivo, e aí se reinserir realmente nessa luta política...”

Tratando da questão das massagens terapêuticas, essas também são componentes de atividades dos grupos de ajuda mútua. Através delas, o corpo é objetivado e trabalhado. Segundo a psicoterapeuta Lúcia Soares, as massagens têm a função de trabalhar o corpo no sentido de lhe dar mais dinamismo, superando a inércia e a depressão.
“A massagem terapêutica é um trabalho que nós acreditamos que seja muito importante na saúde geral de todo o paciente de HIV/Adis. Por quê? Porque é saúde, o bem - estar físico e mental. É o ser humano como um todo, é o biopsiquícossocial...” “Essa questão da massagem é muito interessante porque a maioria dos portadores não tem essa possibilidade do ‘toque’, então eles têm muita dificuldade com isso, é essa massagem, ela propicia também o relaxamento para que possa existir nesse relaxamento uma melhora física, esse reconhecimento, esse contato com o seu próprio corpo...”

A doença de AIDS, como outras tantas, trás à tona o confronto com a auto-imagem: corpos anorexados, debilitados, decaídos, são as imagens que povoam a mente das pessoas doentes. Pessoas afetadas com a tuberculose, com o câncer, o diabetes e a AIDS, dentre outras, de que tratam autores como: Sontag (1984 e 1989), A. Camargo (1994), Ornellas (1997), C.V.L. ferreira (1994), e outros mais, enfrentam grande depressão, ao imaginarem seus corpos deformados pela doença. Segundo o psicoterapeuta Everton Pedrosa, da ONG ASAS,
“... o trabalho de massagem terapêutica também é importante porque ele possibilita o relaxamento do corpo cansado, que se (re)energiza a partir da massagem. Nessa perspectiva Everton vê na Gestalt, e na Bioenergética (que são ciências de tratamento corporal), grande valia para ajudar os portadores do HIV/AIDS a descobrirem o seu próprio corpo, que eles geralmente desconhecem...”

Segundo ele, o ato de trabalhar o corpo, conhecer o corpo através da massagem terapêutica é também resgatar a cidadania desse corpo: “... o reconhecimento do tocar, do cuidar do corpo”.

A partir dessas considerações, fica notória a seriedade e o valor do trabalho desenvolvido pela ONG ASAS junto aos portadores do HIV/AIDS.
A ONG GESTOS: Soropositividade, Comunicação, Gênero, tem por objetivo desenvolver trabalhos de assistência psicossocial, jurídica, e educativa às pessoas portadoras do HIV/AIDS. Como mostra o quadro acima, esta ONG foi fundada há quatro anos, atende 50 pessoas portadoras e dez familiares de portadores. Como a ASAS, a GESTOS também faz atendimento psicoterápico em grupo e individualmente. Oferece cestas básicas e vales transporte. Faz trabalho com adolescentes em comunidade de baixa renda. (Tem ainda como um dos seus objetivos tornarem os seus clientes “agentes multiplicadores de informação”, a exemplo dos agentes de saúde, e criar um banco de horas).
Segundo o psicoterapeuta desta instituição, Tony, a idéia do nome GESTOS (que não é uma sigla), nasceu de uma explosão de idéias: “fazer gestos”, “praticar gestos” , com relação à questão da Soropositividade, prevenção HIV/AIDS. Segundo ele, esse nome ficou sendo um nome atrativo nesse sentido.
“Não sendo uma sigla, a condensação de: Soropositividade, comunicação, gênero corresponde a prestar assistência em três áreas de atividades. Ou seja, praticar gestos em relação as outras pessoas, de solidariedade, de prevenção, de comunicação, etc.”

Como observamos no quadro acima, os objetivos da ONG GESTOS se assemelham aos da ONG ASAS no que tange às suas ações assistenciais, mas no que diz respeito aos seus fundamentos pedagógicos notamos uma diferença significativa, visto que a mesma não se orienta por princípios religiosos, ou da fé cristã. Ela está voltada para uma prática política de resgate da auto-estima e de educação para o exercício da cidadania, para a defesa dos direitos e cumprimento dos deveres, para a defesa das identidades de gênero, dos espaços sociais e dos territórios políticos para a expressão das identidades, sem uma preocupação com a fé cristã (como o faz a ASAS), mas, sem ser alheia a essa questão vivenciada pelas pessoas que assiste. Aqui é conveniente esclarecer que as questões relativas à auto-estima, e à educação para a cidadania também fazem parte dos conteúdos programáticos da ONG ASAS. A diferença entre ambas decorre de seus fundamentos filosóficos: fé cristã (ASAS), prática política (GESTOS). Sendo os dois muito importantes
Segundo o psicoterapêuta Tony, os caminhos principais de atendimento da ONG GESTOS ao soropositivo são dois. Um é a preocupação com as questões que dizem respeito ao emocional, um emocional fragilizado pela condição de soropositivade.
“As questões psicológicas que dizem respeito à questão do HIV/AIDS e aí vai corresponder também à questão relacionada à sexualidade, à família, é..., relações sociais que passam a ser definidas a partir do HIV”.

O outro caminho, que serve paralelamente, é a construção da cidadania do soropositivo.
O princípio pedagógico da ONG GESTOS constituído a partir da soropositividade, da comunicação e do gênero, envolve a discussão de três aspectos pertinentes da AIDS: 1- a condição sociocultural, política e econômica que é posta em cheque; 2- a necessidade de estabelecer e manter uma rede de comunicação entre os próprios portadores, entre as instituições sociais: o Estado, as organizações governamentais, famílias, trabalho, etc. 3- o fato de o HIV ter sido diagnosticado em primeira instância pela relação sexual, tendo os homo/bissexuais masculinos como os transmissores prevalentes, o que forçou a discussão do gênero.
O que é significativo nos trabalhos destas ONGs/AIDS é a questão política de educação para a cidadania dos portadores, o incentivo para a construção do espaço social onde as novas identidades se façam representar e interagir; a nova ética, dentro das relações sociais de respeito, solidariedade, comunicação.
A questão ética de uma identificação do outro que se manifesta no cuidado para a não transmissão do vírus, ajudar o outro a se ver como uma pessoa igual à outra qualquer, para se reinserir no mercado de trabalho, reconstituir a vida, para cobrar do poder público políticas de assistência para: tratamento e prevenção. Segundo o psicoterapêuta Tony essa questão ética suscita
“... certo espírito de solidariedade que passa a mudar a vida. As pessoas precisam da solidariedade uns dos outros também. Começa-se a doar solidariedade, fica mais sensível às questões da vida..., passam a rever uma série de coisas, vão estar mais sensíveis a essas coisas...”

O atendimento psicoterápico da ONG GESTOS é feito individualmente, ou nos grupos de ajuda mútua, na mesma perspectiva com que é feito em outras ONGs/AIDS (como a ASAS). Segundo o psicoterapeuta Tony, a GESTOS tem uma única intenção nesse tipo de atendimento, que é o de levar os seus clientes a refletirem a sua condição de portador, de vida pessoal, de gênero.
“A GESTOS não tem nenhuma intenção de dar sugestões, conselhos ou opiniões: faça isso, faça aquilo e tal. Mas é refletir com eles. Levar cada um a refletir a sua vida, a sua condição de gênero. Se você é mulher, você deve ter consciência e clareza de como você é construída socialmente, dos valores que a sociedade coloca para que você se posicione e saibam quais são os seus direitos e os seus deveres também”.

As ONGs/AIDS, aqui na cidade do Recife: ASAS e GESTOS estão configurados em duas representações institucionais que estão prestando um serviço de qualidade à sociedade, através de grupos de trabalho, devidamente qualificadas para as tarefas que desenvolvem. O que falta para uma melhor atuação das mesmas é o reconhecimento desse serviço pelo poder público e privado, concedendo-lhes apoio e recursos materiais para sua melhor estruturação.
2.3- Caracterização: demográfica/social/epidêmica dos entrevistados
A população entrevistada na ONG ASAS e na ONG GESTOS guarda no seu perfil particularidades inerentes aos portadores do HIV/AIDS (em qualquer recanto do país e do mundo em que estejam), com as devidas diferenças e restrições que se façam necessárias. Daremos a seguir a caracterização demográfica, social, e epidêmica dos portadores entrevistados. Chamamos a atenção para o fato de que os nomes com os quais os apresentamos são fictícios.

Portador 1
Germano, sexo masculino, 26 anos. Domiciliado em Recife. Solteiro, não tem filhos. Instrução segundo grau completo. Profissão, auxiliar administrativo. Ocupação atual, artesão, está no Benefício do INSS. É de religião católica, mas não é praticante. Tem um ano de diagnóstico de infecção. Acredita ter-se infectado no sexo, não teve nenhuma infecção oportunista até o momento, não toma coquetel. Mas faz tratamento ambulatorial e toma medicamentos para controle. Faz tratamento no Oswaldo Cruz, recebeu o diagnóstico através do médico. Veio para a ONG indicado por um amigo.

Portador 2
Jamerson, sexo masculino, 33 anos, solteiro, sem filhos. Cursou o primeiro grau. Procedente de Paudalho. Profissão, auxiliar de escritório, mas agora está aposentado. É católico, mas não pratica a religião. Tem quatro anos de diagnóstico de HIV/AIDS, e acredita ter-se infectado no sexo. Já teve pneumonia, tuberculose, sarcoma de Kaposi, e toma coquetel. Faz tratamento no Hospital Correia Picanço, recebeu o diagnóstico diretamente no laboratório. Veio para a ONG indicado por amigos.

Portador 3
Clarice, sexo feminino, 38 anos, viúva, tem três filhos. Cursou o primeiro grau menor. Procedente de Camaragibe. Profissão camareira, atualmente está desempregada, e recebe pensão deixada pelo marido. É católica praticante. Tem seis anos de diagnóstico de HIV/AIDS e acredita ter-se infectado no sexo (com o marido que morreu de AIDS). Já teve problemas de Herpes Genital, no sistema vascular, e linfático. Toma coquetel, faz tratamento no Oswaldo Cruz, recebeu o diagnóstico através da psicóloga do hospital. Veio para a ONG encaminhada pelo médico.

Portador 4
Bernardo, sexo masculino, 35 anos, solteiro, não tem filhos. Cursou até o segundo grau. Procedente de Recife. Profissão, gerente de hotel ( no setor de hospedagem). Está aposentado. É católico, mas não é praticante (freqüenta o espiritismo). Tem doze anos de diagnóstico de infecção de HIV/AIDS. Acredita ter-se infectado acidentalmente. Já teve tuberculose e Sífilis, toma coquetel. Faz tratamento no Hospital Correia Picanço, recebeu o diagnóstico através do médico. Veio para a ONG recomendado pela médica.

Portador 5
Marcelino, sexo masculino, 26 anos, casado, tem uma filha. Cursou até o primeiro grau (está fazendo o supletivo). Procedente de Igarassu. Profissão motorista, desempregado, e faz biscate como Kombeiro. Recebe o Benefício do INSS. É da religião espírita kardecista. Tem dois anos de diagnóstico de HIV/AIDS, e acredita ter-se infectado no sexo. Já teve pneumonia, toma coquetel. Faz tratamento no Oswaldo Cruz, recebeu o diagnóstico através do médico. Veio para a ONG indicado pelo médico.

Portador 6
Giovanni, sexo masculino, 37 anos, solteiro, não tem filhos. Cursou o segundo grau. Procedente de Recife. Profissão auxiliar administrativo. Está desempregado e recebe o Benefício do INSS. É espírita kardecista. Tem sete anos de diagnóstico de HIV/AIDS, não sabe como se infectou. Já teve febre reumática, artrite, pneumonia. Não toma o coquetel, mas toma medicamentos para controle. Faz tratamento no Oswaldo Cruz, recebeu o diagnóstico através do médico. Veio para a ONG indicado por um amigo.

Portador 7
Eugênia, sexo feminino, 37 anos, viúva, vive com um companheiro., tem quatro filhos do primeiro casamento. Cursou o segundo grau. Procedente do Cabo. Profissão, Educadora Popular. Trabalha numa ONG. Não pratica nenhuma religião, mas acredita em Deus. Tem dois anos de diagnóstico de HIV, e acredita ter-se infectado no sexo com o companheiro (que também é soropositivo). Não teve infecção até o presente momento, não toma o coquetel, mas toma medicamentos para controle. Faz tratamento no Hospital Correia Picanço, recebeu o diagnóstico através do médico. Veio para a ONG indicada por um amigo.

Portador 8
Yanê, sexo feminino, 31 anos, solteira, não tem filhos ( mas gostaria muito de ter). Cursou o primeiro grau. Procedente de Moreno. Profissão cabeleireira. Está desempregada, e recebe o Benefício do INSS. Não pratica nenhuma religião, mas crê em Deus. Tem dois anos de diagnóstico de HIV/AIDS, e acredita ter-se contaminado no sexo. Já teve pneumonia, meningite por tuberculose, toma coquetel. Faz tratamento no Hospital Correia Picanço, recebeu o diagnóstico através do médico. Veio para a ONG indicada por uma amiga.

Portador 9
Vanesça, sexo masculino, 42 anos, solteiro, não tem filhos. Cursou o segundo grau. Procedente de Recife. Profissão, profissional do sexo (travesti). Desempregado, recebe o Benefício do INSS. Não pratica nenhuma religião. Tem três anos de diagnóstico de HIV/AIDS, e acredita ter-se infectado no sexo. Já teve problemas de linfomas, fez quimioterapia, toma coquetel. Faz tratamento no Oswaldo Cruz, recebeu o diagnóstico através do médico. Veio para a ONG indicado por um amigo.

Portador 10
Alcides, sexo masculino, 52 anos, viúvo (mas vive com uma companheira), tem duas filhas, e uma neta. Cursou o segundo grau. Procedente de Recife. Profissão, motorista, mas está aposentado. É católico praticante (mas já foi evangélico da Assembléia de Deus). Tem nove anos de HIV/AIDS, e acredita ter-se contaminado numa transfusão de sangue. Já teve sífilis, e tuberculose, toma coquetel. Faz tratamento no Hospital das Clínicas, recebeu o diagnóstico através do médico. Veio para a ONG indicado por seu advogado.

Portador 11

Olímpio, sexo masculino, 30 anos, solteiro, não tem filhos. Cursou o primeiro grau menor. Procedente de Recife. Profissão, servente, mas está desempregado. Recebe o Benefício do INSS. Não pratica nenhuma religião (já foi evangélico da Assembléia de Deus). Tem um ano de HIV, e acredita ter-se infectado no sexo. Já teve sífilis,, e outras doenças venéreas, e sofre de doença respiratória, não toma coquetel, mas toma medicamentos para controle. Faz tratamento no Hospital Correia Picanço, recebeu o diagnóstico através da psicóloga do COAS. Veio para a ONG indicado pelo COAS.

Portador 12
Kátia, sexo feminino, 29 anos, solteira, mas já viveu com um companheiro com quem teve quatro filhos (apenas dois vivem com ela). Cursou até a terceira série do primeiro grau. Profissão, empregada doméstica. Atualmente está desempregada, e recebe o Benefício do INSS. É católica, mas também freqüenta igrejas protestantes. Tem três anos de diagnóstico de HIV/AIDS, e acredita ter-se infectado com outro companheiro com quem vivia (que morreu de AIDS). Já teve tuberculose, toma coquetel. Faz acompanhamento do Hospital das Clínicas, recebeu o diagnóstico através da médica. Veio para a ONG indicada por um conhecido.

Nesta caracterização do grupo de portadores que entrevistamos é possível observar que a homogeneidade entre eles é bastante pertinente. No aspecto demográfico, todos são da RMR (Região Metropolitana do Recife). A cidade de Recife, por ser a Capital, é o Município que detém o maior índice de pessoas infectadas com o HIV/AIDS com um total de 239 notificações entre 96-97 fazendo um acumulado de 1397 (57,21) de casos notificados . No que concerne a condição sociocultural, notamos que quase todos estão desempregados, alguns aposentados, e os outros no benefício do INSS. O que consideramos pertinente para um aprofundamento nessa caracterização é a condição epidêmica dos entrevistados. Observamos que é a mesma está em consonância com toda a população nacional, que está infectada, que é investigada pelo Ministério da Saúde em três aspectos fundamentais: a questão socioeconômica, a questão do nível de escolaridade, e a idade, visto que o mesmo ainda não possui outros mecanismos para fazer os levantamentos desses dados nessas duas décadas de epidemia .
Analisando a questão da caracterização demográfica, social, e epidêmica dos entrevistados, observamos que no fator epidêmico, apenas cinco deles ainda não tomam o coquetel: Germano, Giovanni, Eugênia, Olimpio, e Kátia, o que vem indicar que os mesmos ainda estão na condição de soropositivos assintomáticos, e fazem acompanhamento médico-ambulatorial apenas para controle da saúde imunológica: para manter o CD4, e a carga viral baixo (Montagnier, 1995). Os demais já estão fazendo o coquetel, pois são pessoas com AIDS. É o caso de: Jamerson, Clarice, Bernardo, Marcelino, Yanê, Vanesça, e Alcides. Portanto, notamos que é um recorte significativo do grupo de entrevistados que já estão com a saúde com maior comprometimento com a AIDS, e por isso, por estarem nessa condição os mesmos necessitam de cuidados médicos maiores, tendo de tomar o coquetel diligentemente. Observando os depoimentos de alguns desses entrevistados vemos que esse fato (de condição de doente de AIDS), torna-se uma preocupação muito grande para os portadores. E não apenas por receio de piorar o seu estado da saúde, mas também por medo que faltem os medicamentos , quando o governo cogita da possibilidade do corte de verbas para a saúde, o que implicaria no cancelamento da distribuição dos medicamentos. Assim, perguntados sobre o medo de que faltem os medicamentos, obtivemos as seguintes respostas de um recorte do grupo entrevistado:
Jamerson: “É..., eu tomo o coquetel. São várias drogas juntas. Eu pego no Hospital Correia Picanço. Eu tenho muito medo que faltem os medicamentos. De vez enquando agente fica vendo reportagens..., essa semana eu li uma reportagem que dizia que em 1998 ninguém sabe como é que vai ficar a distribuição desses medicamentos. Ai..., né?”

Bernardo: “Eu tomo o coquetel. Eu apanho lá no Hospital Correia Picanço. Até agora não tem faltado, não. Mas..., eu tenho muito medo que falte. Eu ouvi um boato que vai faltar. Eu tenho medo que faltem.”

Clarice: “Tomo o coquetel. Eu pego lá hospital onde eu me trato, no Oswaldo Cruz.. Eu tenho muito medo que falte. Tenho medo, sim. Tenho muito medo que falte os remédios, as vezes agente ouve dizer que o governo vai deixar de dar os remédios, eu fico com medo...”

Marcelino: “Eu tenho muito receio que faltem os medicamentos porque eu não tenho condições de comprar. Tenho bastante receio. Porque eu tomo o coquetel, eu apanho lá no hospital onde eu faço tratamento, é lá no Oswaldo Cruz”.

Yanê: “Tenho receio que falte, né? Porque são muito caros..., eu tomo o coquetel, eu recebo no Hospital Correia Picanço, onde eu me trato.”

Alcides: “Eu tomo o coquetel, né doutora? Eu apanho lá no hospital das Clínicas, onde eu faço tratamento, e eu tenho muito medo que faltem os medicamentos... Falar que pode faltar medicamento me deixa com medo, né?”

A falta do coquetel representa para os entrevistados a possibilidade de perda da saúde, e a garantia de mais e melhores condições e dias de vida.
Outro aspecto que consideramos importante nessa caracterização dos portadores está configurado nas representações sobre o imaginário social da AIDS construídas pelos portadores. No indicador onde perguntamos o que é a AIDS para eles, obtivemos respostas elaboradas que demonstraram certo tipo de conhecimento socialmente comunicado entre eles não somente sobre a epidemia, mas também sobre outras questões discursivas sobre as políticas públicas governamentais para as pessoas portadoras, sobre os medicamentos, o atendimento médico hospitalar, e o atendimento nas ONGs/AIDS. Vejamos nas falas:
Germano: “O vírus da AIDS é como um desbravar, como entrar num túnel em busca de um ser superior, de um ser poderoso, milagroso. Uma força que alguns chamam de Jeová, outros de Deus, é uma força. A AIDS, ela veio e de certa forma impõe que as pessoas parem e se defrontem com essa realidade: da morte, da necessidade de uma busca de Deus, chega mais perto dele. É..., estar bem com uma realização interior e com o ser supremo.”

Bernardo: “A AIDS? É como se você entrasse num túnel. Vai andando, andando, andando..., e você olha pra trás e lá na frente você encontra uma luz, e aquela luz é a tua vida, entendeu?... Antes de existir o coquetel era desesperador. Você tinha a certeza que ia morrer antecipar sua morte com essa doença. Mas com o surgimento do coquetel..., e esse coquetel é que vai te levando à aquela luz ali. Quando chegar no início e aparecer a luz, é o teu passo para a tua cura total, que é a vacina, o restabelecimento. A AIDS é isso, ela ameaça a vida da gente, põe em risco a nossa segurança de viver mais, viver maior.”

Jamerson: “Eu tenho várias definições e ao mesmo tempo eu não sei nada (risos). Eu já li muito sobre isso, e ficava muito intrigado quando lia. Eu pensava assim: meu Deus do céu será isso um castigo de Deus? Será um castigo de Deus? Um castigo para as pessoas fazerem esse negócio de sexo, né? Eu vejo a AIDS mais, como um castigo, sabe? Eu vejo a AIDS como um castigo, uma correção de Deus. É..., um puxão de orelhas, um alerta máximo que alguém pode receber.”

Analisando esses três depoimentos notamos que as representações imaginárias da AIDS, que se constituiu a partir da experiência desses portadores, são de confronto com a própria finitude, com a morte. É nessa expectativa que são criadas a representações sobre um ser transcendente, simbolizado na fé, na esperança de uma realização interior com Deus, onde a AIDS não é de todo má, mas, ela serve para possibilitar esse crescimento, como demonstra o depoimento de Germano. A idéia de entrar num túnel pode ser analisada como esse significando o espaço in lócus onde Deus deverá ser encontrado, e se viverá essa experiência interior a que ele se refere. O túnel também pode significar um lugar de recolhimento, onde a alma pode se preparar para o encontro inevitável com o ser maior: Deus, que está espreitando o sofredor para lhe dar abrigo e ajuda desde que ele o busque. Consideramos essa representação impregnada de um forte sentimento da crença religiosa cristã.
Na interpretação de Bernardo, estar com AIDS, é também como entrar no túnel, e entrar para encontrar a luz, que é a vida. Dentro do túnel a pessoa passará por situações várias, vai ter que andar muito, procura buscar, até, finalmente, visualizar a existência de uma luz, e será essa luz quem trará a libertação da morte. Só que, na representação desse portador, o significante não é Deus, mas sim o coquetel, que deverá ser usado até chegar à descoberta da vacina, que trará a cura definitiva: a luz. Essa também é uma interpretação de cunho religioso, só que é espírita.
No depoimento de Jamerson, a representação do ser supremo, que é Deus, e do coquetel, que é a luz, é completamente desfeita, pois de aliado Deus passa a ser o algoz, aquele que impinge o castigo aos transgressores, aos culpados. Esse portador não vê em Deus um aliado, mas um ser antagônico, que pune que castiga os transgressores, os culpados com a morte de AIDS para serem redimidos de suas culpas: praticando o sexo inadequadamente.
O que observamos nesses três depoimentos é que há um sentimento de culpa que perpassa na interface das falas. Mesmo cada um dos três tentando explicar a AIDS com construções imaginárias diferentes percebemos que a culpa é o sentimento que unifica as três interpretações, e que se representa na comparação com o túnel, feita por Germano e Bernardo, e no puxão de orelhas e no alerta para as pessoas, segundo o pensamento de Jamerson.
A outra parte do grupo entrevistado, construiu suas representações sobre a Aids mais especificamente sobre o sofrimento, a angústia do confronto de estar portador de um mau que traz a iminência do morrer, que pode ser prematuro. Como dizem eles:
Clarice: “Eu acho que a AIDS é uma coisa muito ruim mesmo... Eu me sinto muito triste com a AIDS (chora). É uma coisa muito ruim mesmo.”
Marcelino: “A AIDS? AIDS é mais um modo de vida, mais um modo de vida. É uma experiência de abrir e mostrar caminhos: quem são seus amigos, quem não é. Quem são seus familiares. Mostrou-me isso... Ela veio a mim, porque eu a procurei, eu abri o caminho pra ela. É isso”.
Giovanni: “A AIDS? Eu vejo a AIDS como uma doença que pega e que mata. Eu vejo a AIDS como a morte. Agora de uns tempos pra cá tem esses coquetel que está sendo a salvação, né?”
Eugênia: “Pra mim é algo horrível. Não quero nem falar o que eu sinto quando penso sobre isso, que eu tenho isso (chora muito). Prefiro nem falar.”

Yanê: “Eu acho que a AIDS é uma coisa assim, que aconteceu, e foi acontecendo, e as pessoas não tinham nem idéia que tinham pegado AIDS. É ruim descobrir isso de tá com AIDS (chora muito). Assim, agente acaba, acaba a vida, fica sem esperança, sem mais nada, só medo”.

Vanesça: “Eu defino a AIDS como o mau do século. O mau do século? É uma pandemia, uma doença que atingiu a todos os continentes, e não teve nenhuma outra doença igual a ela. Ela é superior a todas as outras que já existiram”.

Alcides: “Olhe, doutora eu não sei definir a AIDS, não. Eu só sei que quando agente descobre que tá com ela é muito ruim... Quando eu vou tomar os remédios é que eu vejo que as coisas pra mim não é mais como era antes”.

Olimpio: “Olhe, eu vejo a AIDS como uma doença normal, como qualquer doença que exista, como o câncer... Eu não vejo bicho ai, não... Agora, o que a AIDS revelou pelo menos pra mim, foi o fato de eu não tornar obscura a prática do sexo, entendeu? Eu acho que hoje eu pratico o sexo mais seguro. A AIDS me deu confiança”.

Kátia: “Olhe (começa chorando), eu não tenho coragem pra falar sobre isso, não”.
O que fica mais visível no conjunto desse outro recorte dos depoimentos é a condição de fragilização da identidade pessoal das pessoas entrevistadas face ao simbolismo da AIDS em um mau de morte. Ao tentarem definir a AIDS, e não o conseguindo, essas pessoas sofrem impactos na sua auto-estima, pelo fato de se verem nessa nova condição de estar com AIDS, uma condição que é superior a sua capacidade de pensá-la e defini-la. É o limite entre o viver e o morrer. A desarmonia que confronta as identidades desses portadores faz com que os mesmos procurem apaziguar o seu sofrimento assumindo a sua culpa, como é o caso de Marcelino, Jamerson, Olimpio. Ou então de desespero, a ponto de não conseguirem nem falar no assunto, como: Alcides, Yanê, Eugênia, Giovanni e Kátia.
Nesse indicador, nós também encontramos as similaridades com a questão de que em qualquer parte do mundo a AIDS causa os mesmos problemas, a mesma crise de identidade, o mesmo medo, a mesma solidão. Isso independentemente da cultura, de credos religiosos, de condição econômica, de classe social, etc. Esse quadro dramático com o qual as pessoas contaminadas se defrontam faz parte da etiologia da AIDS, e estar soropositivo/a ou com AIDS (mesmo tomando o coquetel) é estar próximo da morte. Essa questão se exemplifica com a experiência do escritor norte-americano Harold Brodkey , que ao saber que estava com AIDS passou por um forte confronto consigo mesmo, com as suas imaginações sobre o viver e o morrer, questionando a sua existência, o seu eu, a sua vida, o amor e o papel da sua esposa, incansável, junto a si naqueles momentos dramáticos de sua vida, até ele próprio se ver forçado pelas circunstâncias da sua condição de portador a admitir sua nova realidade como ele mesmo disse:
“... uma das primeiras coisas que ficam distorcidas e começam a morrer quando se recebe a notícia de que está com uma doença incurável é o interesse no futuro. É extraordinário como os momentos perdem sua dimensão – não perdem o valor, porém se tornam achatados, bem mais vazios. O tempo nos deixa confusos; torna-se desinteressante, prosaico, talvez” (cf. p 5).

E ainda, numa forte crise de angústia, e solidão no confronto com a sua instância identitária, Brodkey vive momentos de fantasias, onde eles conseguiram descrever, poeticamente o seu drama, dando beleza ao lúgubre, que teimava em lhe assediar naqueles momentos da sua vida, como demonstra o seu depoimento:
“A morte não fala macio, não pisa manso. Está logo no corredor. A fraqueza não vem e passa, como uma onda. Ela tem mar estagnado que me invade, e a inundação toma toda a minha alma, minha força, minha sorte, esta vazia e vibra um pouco. Um filhote de raposa, um passarinho nervoso na sombra, um saco de sangue contaminado, uma figura rígida e esquelética, suspira imóvel – é isso a minha consciência” (cf. p.6).

A semelhança desse relato, outras pessoas também viveram suas experiências, suas dores, as quais se assemelham às do nosso grupo de entrevistados, como o médico norte-americano: Mahlon Johnson (neuropatologista da Vanderbilt University de Nashville, Tennesse), infectado acidentalmente, em 1992, fazendo uma autopsia em um paciente morto por Aids; o escritor, roteirista e cineasta, o brasileiro Jean-Claude Bernardet; e a escritora Valéria Piassa Polizzi, que se infectou aos 16 anos de idade com o seu namorado , e tantos outros mais. Desse modo comprovamos que os depoimentos dos nossos entrevistados, se assemelham as experiências vividas dramaticamente, com todas as outras pessoas alcançadas pela AIDS, em qualquer parte do universo onde as mesmas possam ser encontradas.
Outros indicadores que são relevantes nessa caracterização é o comportamento dos portadores em relação às Organizações Não-Governamentais, e aos hospitais. Observamos que eles reconhecem o valor do atendimento nos serviços de saúde, como essenciais à manutenção da estabilidade de sua saúde, como o espaço ideal onde recebem assistência a médica, e que isso mesmo é necessário. Porém, nos seus relatos, quando perguntados se há diferença entre o atendimento no hospital e nas ONGs/AIDS, todos foram concordes em afirmar que sim, enumerando os pontos onde essa diferença mais é notada por eles. Vejamos o que diz esse recorte do grupo de entrevistados:
Jamerson: “Ah! nisso ai eu vejo uma grande diferença! O tratamento que eu faço aqui eu não posso fazer no hospital. Aqui é uma casa de apoio, de solidariedade, de amor...Mudou muito a minha vida né? Eu comecei a enxergar certas coisas que eu não enxergava antes, ou não queria enxergar, né....A participação da ASAS na minha vida, dos psicólogos da ASAS..., hoje eu vejo a vida, vejo a AIDS de outro modo. Eu estou bem mais calmo, mais seguro, mais disposto à enfrentar situações. É outra coisa...”

Vanesça: “Tem uma grande diferença do hospital, aqui. Ninguém é tratado com diferença, com discriminação... Onde eu me sinto melhor? Claro que é aqui: na ONG GESTOS. Aqui é muito mais íntimo, o contato é menos formal, mais amigo, tem muitas amizades, muito respeito...”

Bernardo: “É diferente sim. No hospital nós temos tratamento físico, né? A base dos remédios, e os exames médicos, e isso é importante e necessário, né? Aqui na ONG ASAS nós temos o acompanhamento com os psicólogos, eles nos orientam em qualquer problema que nós tenhamos... Quando eu cheguei aqui na ONG ASAS eu estava muito pra baixo, mal informado, deprimido, baixei completamente a moral. Estava arrasado! Agora, né, eu não tô pensando mais em morrer, né? Dessa doença, não...!”

Olimpio: “Olhe...., porque na realidade uma diferença há. Porque na GESTOS eu encontro um tratamento melhor, em termos de humano, de pessoas, de direitos...O hospital não faz o papel psicológico, ele faz o papel de recuperação da saúde. A GESTOS faz o papel de recuperação da saúde emocional. Em fim, ela faz um entrosamento, é interpessoal, e com uma figura equilibrada que é o psicólogo...Eu vejo várias mudanças na minha vida aqui: criei novos objetivos...A GESTOS abriu um pouco mais a minha mente...me deu novas esperanças...”

Através desses recortes de falas, comprovamos que as ONGs/AIDS vem conseguindo criar ambientes de conforto emocional, para a construção da auto-estima dessas pessoas, e que os resultados tem favorecido bastante as mudanças nas suas vidas, tanto no aspecto físico, quanto no emocional. Nesse parecer, comprovamos também a seriedade com que os profissionais vêm trabalhando junto aos portadores, mesmo em circunstâncias difíceis, visto que lhes faltam uma contrapartida maior e mais definida do Estado, no sentido de lhes dar condições para uma melhor estruturação e abrangência dos seus campos de trabalho.

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