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sábado, 1 de janeiro de 2011
Feliz 2011 - Comemoração em Família
A alegria de estar unidos em família na passagem do Ano Novo é algo inigualável aqui em casa. Minha família é muito grande, e animada também. Os que estão ai nessas fotos são apenas alguns de um todo populacional que irá vindo aos popuquinhos. Alguns deles passam o Reveillon na Igreja, outrs vão primeiro visitar suas sogras e amigos para somente depois virem chegando. Nesse ano as coisas não foram muito diferentes dos outros. Certamente que houve uma novidade: Manuca comeu algo na confraternização da sua igreja e ficou passando mal, ai teve-se que levá-lo na emergência e isso foi logo na passagem do ano quando o pessoal estava começando a chegar e eu ainda estava fazendo o culto com meu irmão Moisés e a minha Mãe Dona Rosa. Se vocês observarem irão ver que ela, D. Rosa, está muito quieta. Pois é. Ela sempre está muito triste nestas datas festivas de Natal e Ano Novo. Primeiro era porque o nosso pai havia falecido (já vai fazer 31 anos),e mesmo já fazendo 30 anos,para ela é como se tivesse sido ontem. Agora, coisas estão muito mais dificéis pra ela, porque sua tristeza ainda fica maior, visto que o SENHOR levou um dos seus filhos, nosso irmão Zeinha, um dos mais amado e venerado por ela, e acho que até por todos nós também. E mesmo tendo completado 5 cinco anos em 2010 que ele se foi, pra ela é como se houvesse sido hoje. Todos nós sofremos a perda desse irmão, porém D. Rosa sofre diferente de todos nós. O Contexto sob o qual ela vive hoje é de muitas saudades; a ausência daquele filho deixa ela infeliz por demais; e ela se proíbe a ela mesma de expressar qualquer sentimento que seja de alegria ou de bem estar para não dar a impressão que já o está esquecendo, ou até mesmo já esqueceu.
Bem, o Nosso Contexto hoje está prometendo ser bastante animado, e os que estão aparecendo nessas fotos são: Marcos e Evanize, sua esposa, Polyana, minha sobrinha, e o Bruno seu esposo; Marily, minha sobrinha, e Oziel seu esposa; também estão alguns cunhados, irmãs, sobrinhas, namorado de sobrinhas, etc.
Também temos duas imagens, por sinal bem agradáveis, da nossa mesa para o jantar. A mesma não está completa ainda pois está faltando colocar outras iguarias; como as sobremesas, os sucos, e as outras bebidas estão na geladeira. Ainda está faltando chegar a outra parte da turma. Dessa vez a Marilene e a sua família não virão, porque seu marido, o Jurandir, está operado do olho, Deslocamento de Retina, ele tem de ficar num repouso e não pode estar mexendo com a cabeça nem com os olhos. Estamos triste por isso. É isso ai. São as pegadinhas da vida, que de vez enquando nos desarmam e deixam com cara de bobos. Nossa condição humana nos expões as nossas veias abertas e produz certos tipos de vulnerabilidades que até ao Ano Novo temos de nos rendar.
Então, aqui eu irei escrever um pensamento, tipo mensagem, para dar uma expressão melhor a esse momento:
O QUE ESPERAMOS DO ANO NOVO?
Na minha interpretação, todos nós esperamos do Ano Novo as coisas melhores, mas dificeis de conseguir e as vezes até emsmo impossíveis. Nossas almas ficam alegres, sossegadas, sentimos uma paz diferente e uma alegria sem igual. Tudo gira em torno do vir a ser. Todos sabemos que no dia 1º do mês de janeiro é o dia de curtir a farra, comer as sobras da noite anteriro e viver o sentimento da paz mundial. Assim, todos estão abertos para uma confraternização coletiva e as identidades se vulnerabilizam e podem até a chegar a abraçar suas relações de desafetos por que é o dia da Paz Mundial! É a abertura da nova vida que está chegando. E ai, todos se confraternizam, trocam presentes, bebem juntos, todos somos um poço de simpatia, solidariedade e fraternidade!Num ano como este:2011, que se mudando de algumas representações governamentais, as coisas ficam mais misteriosas, e as expectativas são diversas e grandes. Por um lado, pode-se estar cheios de esperança, por outro, todavia, os desconfiometro estão abertos... Tudo é um vir a ser. Se pode estar cheios de esperanças, mas também se pode estar cheios de insguranças, dúvidas, desconfinaças. Elegeu-se uma pessoa para governar a nação, e que é uma mulher. Nunca se teve uma mulher no poder aqui no Brasil, para governar como Presidente da República. Esta será a primeira vez. É o laboratório! O que nos espera pela frente? A nossa conjuntura política, tão ideológicamente tão complexa a aprtir de que postulados irá gestar as políticas públicas para tantos segmentos sociais despropriados, vulneráveis e sofridos? Os movimentos sociais, como o dos Sem Terra, estão numa grande expectativa sobre que destinos se irá dar a eles, enquanto sindicato de uma categoria despossuida sem terra, sem chão e sem pão. Nossa conjutura política de agora me cusa um certo receio e me deixa pensando sobre de onde vira, ou que será a prática política governamental da presidente que fara com que todos fiquem satisfeitos e cheios de esperanças, com as nomeações que ministerias que estão sendo feitas para governar a nação? Mas, além disso, o que se espera desse ano novo que acabou de começar com outra Câmara de Deputados, outro Senado e outro Presidente? Uns estão cheios de planos e sonhos, coisas simples, mas necessárias pra seu bom viver. Sonha-se com a antiga casa própria, ou comprar e ou até trocar o carro. Uma mudança social de vida pra melhor é o povoa as cabeças dos indivíduos. Bem, por enquanto eu fico por aqui nessa provocação. Vamos começar a observar a mudança diária das folhinhas do calendário; vamos pagar pra ver o milagre acontecer? E enquanto os milagres não acontecem, fiquemos no paralelo das nossas vidas individuais, pessoais, afetvas, espirituais, cabelos ao vento, "vendo a banda passar tocando coisas de amor", como diz a marchina tão cantada nos anos sessenta pelo talento cantor: Chico Buarque de Holanda. Enquanto as coisas novas, do ano novo não chegam, vamos começar a trabalhar e a monitorar nossas agendas, nossas datas de pagamentos de cartão de créditos e crediários e ainda vamos atrás das promoções pra ver se compramos a máquina de laver, a geladeira, aTV Tela Plana, ou a Mota, tão necessárias e desejadas e que o 13º terceiro não deu pra comprar. êta vida dura! E ai, para ver se iremos conseguir ir realizando todas as coisas que estão em nossas mentes e nosso quereres.
Esse ano irá também passar, e correrá tanto quanto todos os outros, correrá mais do que nossas pernas pernas para alcançarmos tudo que precisamos e queremos. O ano novo está ai, nós estamos nele e com ele para viver, viver e viver, até o dia que nossos sonhos se concretizarem, até a hora em que ocuparmos o lugar tão sonhado e esperado, até que outra vez estejamos vestidos de roupas novas, de sapos e botas novas, com a árvore de natal cheia de luzinhas piscando e agente se abraçando e dizendo mais uma vez: FELIZ ANO NOVO! mUITA PAZ, AMOR E PROSPERIDADE.
FELIZ ANO NOVO FAMÍLIA FIALHO!!!
quinta-feira, 30 de dezembro de 2010
Dissertação do Meu Mestrado
QUANDO NEGATIVO É MELHOR QUE POSITHIVO -
um estudo sociológico das experiências identitárias
de Pessoas vivendo com HIV?AIDS em Recife.
Capítulo 04
O GÊNERO NA AIDS
O gênero na AIDS é uma discussão que vem sendo bastante polemizada nos espaços sociais. De início, pela predominância da presença masculina configurada nas expressões do homossexualismo e do bissexualismo. Depois, com a aparição da mulher no cenário que, de acordo com alguns estudiosos (Guimarães, 1994, Parker e Galvão, 1996), entrou tardiamente na discussão, sem nunca ter estado fora dela.
Na AIDS, algumas questões predominam quando se trata de discutir o gênero. São primeiro, as que dizem respeito à prática do sexo (que na AIDS tem que ser seguro) com o uso da camisinha, segundo, as que dizem respeito aos parceiros ( a questão do grupo de risco, atualmente já reconfigurada na discussão), e, terceiro, as relações monogâmicas entre as pessoas unidas judicialmente. Melhor dizendo, as relações de aliança .
Este capítulo será dividido em três seções. Na primeira, abordamos os aspectos referentes à vida pessoal e social da mulher soropositiva a partir dos impactos causados pelo vírus HIV. Tomamos como referência de análise os depoimentos do grupo que entrevistamos, buscando identificar tanto o comportamento dos atores ao se descobrirem soropositivos, como as prioridades eleitas para suas vidas a partir dessa nova situação. Na segunda, trataremos dos reflexos produzidos pelo HIV na vida das pessoas de orientações sexuais homossexuais, e de como estes, ao longo dessas duas décadas de AIDS, vêm forçando a sociedade a aceitá-los como uma categoria de gênero socialmente sancionada. Na terceira, buscamos ver como a sexualidade vem sendo tratada, como vem sofrendo o impacto das campanhas e das instruções que são dadas pelos agentes de saúde – médicos, enfermeiros, assistentes sociais, psicólogos – sobre a prática de sexo seguro (que cria antagonismos no erotismo entre os parceiros). Veremos, também, a influência da questão dos grupos de risco, contidas nas propagandas e campanhas dos governos. Buscaremos ver, ainda, como os indivíduos resolvem a questão de gênero nessa nova realidade, e como lidam com as mudanças que sofrem nas suas sexualidades ao receberem o diagnóstico de soropositivos. Em que situações cotidianas foram mais afetadas e como se confrontam no sexo ao ter que usar a camisinha. Tomamos também como referencial de análise os depoimentos do grupo entrevistado.
3.1- A Condição Feminina na AIDS.
A condição da mulher soropositiva vem sendo bastante discutida ao longo dessa segunda década de AIDS. A cada dia aumenta mais o número de mulheres infectadas pelo vírus. Esse fato se explica pela comprovação das relações extraconjugais, configuradas na traição hetero/bissexual. De acordo com o último informativo do Ministério da Saúde, o número de mulheres infectadas, no Brasil já chegou quase ao mesmo nível de igualdade dos homens, de forma que nas duas categorias os dados demonstram o seguinte: em 1983, a razão de casos entre homens e mulheres foi de 17:1, enquanto para o ano de 1997, encontramos 2 casos em homens para 1 caso em mulheres . O que nos leva a concluir que as relações de gênero que permeiam a nossa cultura, essencialmente machista, são de prevalência do poder masculino sobre o feminino, sugerindo não existir negociações do uso da camisinha entre os parceiros para garantia do sexo seguro.
Tal realidade referenda a idéia de que o homem pode naturalmente continuar a ter relações sexuais extraconjugais, enquanto a mulher permanece à mercê dos efeitos que essas condutas poderão trazer à sua vida. Assim, comprova-se cada vez mais o aumento do número de mulheres que através dos seus parceiros fixos contraíram o HIV, com riscos para elas e para os seus filhos. Este fato aponta para a questão da verticalização da AIDS .
A inclusão da mulher na discussão da AIDS, no Brasil, é considerada tardia por diversos estudiosos no assunto. Guimarães (1994), Parker e Galvão (1996), vêm, ao longo desses últimos anos, tentando mostrar que mais uma vez a mulher sofre exclusão pela sua condição de gênero. Segundo estes autores, as políticas públicas de saúde para a mulher soropositiva no Brasil, ainda não são as mais adequadas para atender as necessidades da mulher em suas diversas dimensões sociais e culturais. O que deixa as mulheres expostas a contraírem todo tipo de doenças sexualmente transmissíveis. Ao longo da história, as mulheres sempre pagaram o ônus pelas peripécias sexuais dos homens, o que vem sendo comprovado em várias situações de surtos de epidemias de doenças sexualmente transmissíveis como a sífilis, a herpes genital, a gonorréia, a candidíase ( Carrara, 1994). De modo que a mulher sempre teve a saúde sob risco, sempre estiveram as voltas com doenças sexualmente transmissíveis, adquiridas através dos seus parceiros.
Com a AIDS, a condição de precariedade na saúde feminina é reconfigurada. A mulher passa mais uma vez a ser exposta às intempéries da vida, em função do comportamento sexual masculino. Segundo Guimarães, “muitos dos fatores que predispuseram as mulheres a terem uma saúde precária no passado, agora aumentam a sua vulnerabilidade à infecção pelo HIV/AIDS, sendo os principais aqueles calcados no relacionamento de gêneros, no status feminino e nas suas condições de vida” (Guimarães, 1994, p. 220).
Sendo o homem suscetível biologicamente a se infectar com o vírus do HIV, a transmissão deste para a mulher é muito mais comum do que da mulher para ele. O que denota que há um desequilíbrio sociológico de forças entre o homem e a mulher, que só agrava sensivelmente a situação das mulheres para o HIV. Isso pode ser deduzido do fato de que a dependência econômica da mulher e a normatização pela sociedade dos padrões comportamentais diferenciados para homens e mulheres, colocam estas duas representações de gênero em situação de desigualdade, com o risco maior e permanente para a mulher. Estamos comprovando esta situação a cada dia pela equiparação do número de infectados: homens e mulheres , com estas quase assumindo a prevalência.
A vulnerabilidade das mulheres em face de tão delicada situação é a prova de denúncia e de necessidade de reversão do quadro. Apesar de no passado a infecção pelo HIV/AIDS ter sido considerada como uma doença da responsabilidade dos homo/bissexuais, dos usuários de drogas e de outros grupos de profissionais do sexo considerados de “alto risco”, é nessa segunda década de Aids que se vê o vírus HIV como uma grave ameaça às mulheres sexualmente ativas, inclusive as que são monogâmicas. Este fato aponta para um reconhecimento social das outras orientações e práticas sexuais, negadas socialmente, mas postas às claras a partir da AIDS .
A partir dos anos 90, a feminização da AIDS tem sido o grande viés discursivo do Movimento Feminista, de organizações não-governamentais e de outros grupos que lutam por políticas públicas de saúde que atendam as mulheres soropositivas em suas necessidades básicas de assistência a saúde ginecológica: prevenção de câncer de colo uterino, de mamas, e tratamentos de doenças sexualmente transmissíveis. Paralelo a isso, busca-se a elaboração de campanhas que esclareçam as mulheres sobre a necessidade de negociações do uso da camisinha com os seus parceiros. Busca-se, também, conscientizar os homens tanto dos seus comportamentos irreverentes para com as mulheres como da necessidade dos mesmos repensar as suas práticas sexuais, como prevenção. Ao que se observa o homem vem se mantendo ao longo dessas duas décadas de HIV/Aids como o senhor todo poderoso de um passado sociocultural que já vai muito distante, mas que permanece intocável, sendo ele o grande veiculador desses desencontros todos (Parker e Galvão, 1996).
O que é notório em toda discussão do comportamento do homem e da mulher, seja na AIDS ou em outra realidade qualquer, é a falta de esclarecimentos da mulher sobre os seus direitos sociais. Ou seja, a mulher ainda não demonstra politização e consciência em relação a todos os abusos que sofre no contexto da dominação de gênero. Isto aponta para a questão social e política da identidade de gênero e para a falta da consciência da cidadania ativa na formação educacional da mulher, em geral.
Observa-se, nesta segunda década de AIDS, que as mulheres estão se aproximando cada vez mais dos homens, mas não como uma conquista resultante das lutas incessantes dos grupos feministas organizados por direitos iguais, e, sim, pelo aumento do percentual de mulheres contaminadas com o HIV/AIDS, o que reforça a frustração da mulher face à perversão do machismo.
No nosso trabalho, num grupo de doze portadores entrevistados tivemos sete heterossexuais, dos quais quatro são do sexo feminino. Observamos que as mulheres infectadas pelos seus companheiros reduzem o problema a um drama existencial, sem colocarem as questões políticas subjacentes. Não registramos nenhuma outra queixa das mesmas contra os homens que as infectaram, que não seja o desabafo e a tristeza. Passados os primeiros impactos de recebimento do diagnóstico, as mulheres retomaram a vida sexual com seus parceiros. Outras cuidaram deles com desvelo até a morte. Foi o que observamos nos casos de Kátia, Clarice e Eugênia, durante as entrevistas. Quando lhes perguntamos sobre o que elas sentiram quando se souberam infectadas pelos seus companheiros responderam:
Kátia: “Quando eu soube? Eu fiquei com raiva, na mesma hora quando eu soube eu fiquei com muita raiva, entendeu como é?....Eu fiquei muitos dias pensando.... pensando.... Mas, depois eu pensei e eu disse: acho que não, aconteceu só. Ele dizia que gostava muito de mim, agente vivia bem, então...Eu na verdade não sei. Eu gostava dele, tinha muito cuidado por ele, só não posso responder da parte dele por mim. Depois que ele se internou eu redobrei os meus cuidados por ele, ia para o hospital, cuidava dele, dava comida na boca dele, tudinho....Ele morreu eu segurando nas mãos dele, entende? Foi isso...”
Clarice: “Eu quando soube chorei muito! Me deu uma angústia tão grande no meu coração, um desespero....Até hoje eu não me conformo mesmo! Fiquei muito desesperada e não me conformo, de jeito nenhum!...Porque ele fez o exame lá em Maceió, tá entendendo? Ai confirmou que ele estava com o vírus, então ele veio embora de vez e não disse nada a mim que tinha feito exame, e eu também não podia saber que eu tava....Quem cuidou dele fui eu mesma...Quem tomou conta dele fui eu né? Fui eu e Deus. Um ano de luta. Pra tudo: hospital, médico, exame para internamento, tudo fui eu...Ninguém me obrigou. Eu tomei conta porque eu achava que era o meu dever de esposa. Era meu dever, ele era o pai dos meus filhos e eu não ia deixar ele com um problema desses abandonado...Como muita gente me disse: tá vendo eu, se fosse tu....ele tava lá com a outra, porque ele não ficou lá com a outra pra ela tomar conta dele? Não, veio simbora, veio simbora pra quem tomar conta? pra tu tomar conta. Tanta mulher que ele teve porque uma delas não toma conta dele?....Não, ninguém me obrigou, eu tomei porque achei que era o meu dever de esposa”.
Eugênia: “Olhe... foi um horror! A gente fica, né? Você não imagina que o outro pode fazer isso com agente, mas ele faz. Fica muito difícil, porque agente passa a ter relações sexuais com o preservativo e existe uma resistência muito grande da pessoa em aceitar.... No meu companheiro..., existe uma resistência muito grande, ele diz que incomoda, por que é que tem de usar isso e tal... Tem preconceitos por ter que usar essas coisas, né?... Fica muito difícil pra mim....Porque eu digo: então não tem!. Se não usar a camisinha, não tem! É difícil! Agente tenta aqui e acolá... Vai dando um jeito....Eu uso a camisinha feminina pra ver se fica melhor, mas ai...É muito difícil tudo isso!”
Observamos nos relatos destas três mulheres que não há uma indignação pelo fato dos seus maridos as terem infectado. Há um sentimento de dor e tristeza ao se comprovarem contaminadas, mas que é sobrepujado pela suas condições de companheiras que se percebem responsáveis por esses homens. Tal comportamento remete à discussão do papel da mulher enquanto mãe de todos, no lar. A mulher não demonstra ter como referência a questão da desigualdade social entre ela e o homem, para, a partir dai estabelecer uma atitude de indignação face ao desrespeito com que é tratada. Assim, o que elas priorizam (e isso pode até funcionar como uma defesa delas mesmas no sentido de não se reconhecerem como traídas e ofendidas), é a dedicação exclusiva aos seus maridos, independente de qualquer outra coisa, e o fato deles as haver infectado não conta nesse momento. Observamos também a predominância da relação de alianças (Knauth, 1996). Isso está bem visível na fala de Clarice quando a mesma enaltece o seu papel de esposa e mãe.
Quanto à outra mulher entrevistada – Yanê, infectada pelo seu noivo, não observamos grandes novidades. Na experiência de Yanê as coisas ficaram num certo anonimato, visto que ela só soube que poderia estar infectada após terminar o seu noivado. Alguns dias depois o seu ex-noivo passou a lhe telefonar dizendo que ela iria morrer de AIDS, fato esse ao qual a mesma não deu importância, como ela mesma relata:
Yanê: “Foi ruim, viu, na época foi horrível...Eu era noiva...Eu acho que eu peguei com ele, meu ex-noivo. Eu era noiva e de repente o noivado acabou, e ele depois do noivado acabado começou a mandar recadinho pra mim dizendo: ah, você vai morrer de Aids, a Aids vai matar você, num sei que mais...Ai logo em seguida, com uns dias começou os problemas na minha saúde....Eu nem quis pensar...não acreditei que o que ele falava fosse verdade..., mas foi né? ...Eu deixei ficar como tava...fazer o quê?, né?...”
O fato dessa mulher não procurar tomar conhecimento do que realmente estava acontecendo, denota a falta de conscientização da cidadania e dos seus direitos sociais. As mulheres estão sempre conciliando as situações, buscando soluções paliativas. Ajudam visivelmente os seus companheiros na superação de determinadas realidades, muitas das quais são de inteira responsabilidade dos mesmos, visto que foram eles que as infectaram como estamos observando na experiência destas portadoras.
No material pesquisado, observamos, também, que as mulheres portadoras elegem prioridades em função da suas vidas domésticas e da necessidade de dedicar maior tempo aos filhos e ao lar. Foi o que observamos em Clarice, Kátia e Eugênia, quando lhes perguntamos sobre o que é mais importante para elas após o HIV/Aids:
Clarice: “Olhe, hoje eu queria poder voltar a viver bem a minha vida, ter uma casa só pra mim, ter um companheiro. Mas, eu penso mesmo é nas minhas filhas. Fico preocupada com a vida das minhas filhas, da minha netinha. Tenho medo que elas peguem essa maldita doença. Eu sempre procuro alertar elas. Eu digo pra ela, a mais velha: olhe minha filha, você se cuide. Não vá transar com ele (o marido da filha) sem usar a camisinha, não. Sinto-me sem apoio, não tenho aconchego de ninguém, nem carinho, é muito ruim isso. Eu quero ver os meus filhos felizes” .
Eugênia: “Ooooolhe! É a família. Eu procuro cuidar mais de minha família, dar mais segurança pra eles. Cuidar da minha família....Ver os meus filhos se formar, cada um concluir o curso que começou, fazer outros, ver o meu filho que teve aquele problema que eu lhe falei (o filho tentou o suicídio quando soube que ela estava com Aids), muito bem. Mas a minha preocupação mesmo...., assim... é com relação a segurança da minha família. É o que acho mais importante, é a minha família. Que essa preocupação já existia antes do HIV, né? Mas agora ela fica sendo ainda mais forte, mais importante, porque é a questão da segurança...”
Kátia: “Olhe, o que eu tinha de viver eu já vivi, já sofri, já me diverti, já passeei, eu já fiz tudo. Agora, o restinho da vida que eu tenho eu quero curtir muito os meus dois filhos. O que eu quero é poder dar o melhor pra eles. O que eu tiver eu vou dar. Vou andar, lutar pra conseguir algumas coisas mais, vou ver se fico recebendo uma Sexta básica que é distribuída aqui. Eu vou lutar, e enquanto eu puder batalhar pra dar à eles uma vida melhor eu vou fazer isso. É o meu sonho cumprir a minha obrigação de cuidar deles até quando eu puder.”
Nesses recortes, observamos como são pertinentes para a identidade feminina as prioridades eleitas pelas mulheres a partir das suas condições de portadoras. Conscientes do fato de que a realidade da AIDS desnuda a intimidade, e lhes põe sob a iminência da morte, (Paiva, 1992) as mulheres reforçam atitudes tradicionais de “donas de casa”, voltando-se para os outros com os quais convivem: amar e cuidar acima de qualquer coisa dos filhos e companheiros. Essa atitude de reforço de antigos padrões passa a ser a solução mais imediata e coerente para elas. Nas produções literárias sobre o assunto, trazidas ao público leitor nessas duas últimas décadas de epidemia de Aids (Ferreira, 1994, Camargo, 1994, Paiva, 1992), encontramos uma infinidade de relatos de como as mulheres repensam suas vivências cotidianas, como fazem seus planos para um futuro que lhes é incerto, e como elegem suas famílias como prioridades. Para tanto, suas vidas pessoais e sociais são pensadas sempre tendo a família como o centro principal das atenções, especialmente os filhos, como observamos nos depoimentos acima.
A condição feminina na AIDS não mudou a sua face, mesmo a mulher se aproximando sempre mais do homem pela infecção, como nos mostram cada vez mais as pesquisas. Segundo o que vem sendo discutido ao longo dessa segunda década da epidemia por certos autores (Parker e Galvão, 1996; Guimarães, 1992; Barbosa e Villela, 1996), a questão da Aids tem sido encarada, pelo menos no imaginário social, como um fenômeno masculino. O que pode ser explicado pelo fato do homem ter sido chamado primeiro à discussão pela questão dos grupos de risco: os homossexuais masculinos. A imagem de promiscuidade e transgressão passada por este grupo tendia a reforçar intensamente as noções populares acerca da sexualidade masculina (Parker e Galvão, 1996).
A relação entre as mulheres e o HIV/AIDS é envolvida por um silêncio marcante na sociedade brasileira. Os agentes sociais (das OGs e ONGs) que atuam nessa questão da AIDS (Parker e Galvão, 1996) encontram muitas dificuldades para quebrar este padrão. Entre alguns fatores apontados para explicar o silêncio feminino, está o relacionado às campanhas e propagandas governamentais, que sempre visaram o estímulo da prática da prevenção para o sexo seguro por parte do homem. Nestas campanhas, as mulheres permaneceram como o símbolo da representação sexual que ameaçava a invulnerabilidade masculina. Mulheres de rostos belos e corpos esculturais simbolizavam o risco do homem contrair a infecção caso transasse com elas, como anunciava a propaganda: “Quem Vê Cara Não Vê AIDS” . O silencio feminino na AIDS aponta para a existência na cultura brasileira de representações sociais fundamentadas em juízos de valores diferenciados para homens e mulheres. Isto contribui para que determinados atributos morais sofram uma classificação de gênero, sendo uns delegados à masculinidade e outros, à feminilidade, o que influi nos processos formadores da identidade.
3.2- AIDS: a questão dos “diferentes”
O gênero, na AIDS, faz emergir a discussão sobre a questão social e normativa referente à prevenção e tratamento, o que foi devidamente codificada e sancionada pelo Center for Disease Control – CDC. Este tomou como referência a fisiologia do homem, especialmente o do Primeiro Mundo (Guimarães, 1992), para diagnosticar e elaborar tratamentos para a AIDS. Essa normatização científica classificou o gênero em três categorias: heterossexual, homossexual, e bissexual, sendo esses os termos oficiais usados para o uso clínico na ciência médica. Essa classificação apenas viria a ser conhecida nos países de Terceiro Mundo, entre eles o Brasil, a partir da década de 70. Tal classificação funcionou como um elemento de grande significação para a identidade gay, em luta pelo reconhecimento institucional da sua categoria.
Ao que tudo indica, essa forma de reclassificação das categorias de gênero favorece as diferentes orientações sexuais, abrindo espaço para o reconhecimento político e institucional do homossexualismo como nova identidade de gênero. Observa-se que apesar da intolerância social que os gays (masculinos e femininos) vêm sofrendo por possuírem orientações sexuais diferentes daquelas canonizadas pela tradição machista, a luta pelo reconhecimento avança. Os impasses iniciais causados pela atribuição da responsabilidade pelo surgimento da Aids aos gays, só vieram fortalecer a luta dos mesmos por um “lugar ao sol”.
Na experiência da AIDS, o gênero – por ser uma categoria extremamente demarcada culturalmente – faz diferença social entre os indivíduos. A relação de causalidade estabelecida entre a AIDS e os homossexuais masculinos, responsabilizados pelo surgimento do HIV e classificados como “Grupo de Risco” pela ciência da medicina, gerou evidente mal-estar. O gênero passou, em função disso, a ser redescutido na mídia, resultando no fortalecimento político da categoria dos homossexuais, que já viviam em luta acirrada pelo reconhecimento social da identidade “Gay” com os poderes públicos nos EUA, na Europa, e, também, no Brasil.
Nesse clima, fica notório que a AIDS ao ser definido, numa primeira instância, como uma peste trazida pelos gays masculinos, favoreceu uma maior abertura para que essa categoria se represente e milite na esfera pública, superando a repressão sexual do passado. (Daniel e Parker 1991, Altman, 1995, Rotello, 1997).
No debate da questão do gênero não se pode mais ignorar certas questões: orientações sexuais diferentes, o exercício de outras práticas do sexo, o reordenamento das relações afetivas. As representações tradicionais de gênero fundadas no heterossexualismo parecem insuficientes para evitar o estabelecimento de novas representações que introduzem o imaginário do homossexualismo.
No grupo que entrevistamos tivemos quatro portadores representando a identidade homossexual: Jemerson, Giovanni, Vanessa, e Olímpio. Desses quatro, três não tiveram nenhuma dificuldade em reconhecerem a sua identidade homossexual e em expressarem os seus desejos de (re) organizarem as suas vidas sociais e afetivas para o futuro, almejando, ao lado um companheiro. Como eles próprios disseram:
Giovanni: “Eu estava com dez anos de idade quando eu comecei a pegar as revistas do meu irmão mais velho, revista de homem com homem, homem com mulher, e eu olhava e eu achava os homens nus e as mulheres nuas lindas, e sempre achei interessante no homem... é... a forma do corpo, assim todo cabeludo, barba, bigode, aquele jeito assim..., mexia muito comigo. Atraía-me, desde pequeno me atraía, mas eu achava que aquilo ali era feio, não podia fazer, não podia pensar, e me atrapalhou muito isso... quando eu vim descobrir que eu era homossexual mesmo, eu já tinha 22 anos, quando eu saí do quartel. Foi que eu vim descobrir que eu era homossexual, já depois de adulto.... Hoje eu penso em duas coisas para o meu futuro: a cura da Aids, e encontrar um companheiro, uma pessoa legal, que me ame e eu possa amar, é importante ter um amor pra ser feliz....”
Olimpio: “É porque eu..., eu, eu..., quando eu era garoto eu... eu tinha um relacionamento já desde criança com pessoas do mesmo sexo, certo? Isso foi proliferando, e hoje isso se tornou mais aberto, mais claro pra mim....Eu sou homossexual, é assim que eu me identifico: homossexual mesmo!... eu tenho um sentimento feminino dentro de mim... O mais importante nessa nova fase da minha vida é ter um lar que é o que eu preciso, e ter alguém pra poder me ajudar nos meus momentos de sofrimentos... um companheiro. Isso eu considero mais importante: é um lar, é alguém pra compartilhar um pouco da minha vida, cuidar da minha saúde e ser muito feliz junto dele, né?”
Vanessa: “Eu sou travesti, fui profissional do sexo por muitos anos. De 81 a 92, onze anos, onde eu conseguia me realizar, foi onde eu consegui me realizar mesmo! (risos). Eu me realizei de três formas: Eu consegui me realizar financeiramente, amorosamente, que eu era muito frustrada no sexo, e eu passei....a partir dessa nova profissão eu passei a me realizar demais, como eu queria....Eu não fui ser travesti por opção, porque tem pessoas que vai ser travesti pra sobreviver...Mas eu não optei por ser travesti, eu já nasci com tendências femininas...Eu tinha fantasias, eu queria ter um namorado, eu queria andar de braços dados pelo meio da rua, de mãos dadas, eu queria ir no cinema, na boate, eu queria ser e poder viver como um travesti! Eu quero continuar assim, como eu sou: a lua! Encantando todo mundo, como a música diz. Amar e ser amada, namorar, ter um companheiro, como eu já tenho, né? que me ame muito, e eu a ele, claro...”
Observamos que esses depoimentos apontam para o fato de que a identidade gay emerge na sociedade como uma realidade definida, que se impõe como algo incontestável. Ao se autodenominarem “gay” os indivíduos desejam mostrar tanto suas liberdades de expressão como a libertação dos interditos de uma moral social e sexual repressora, herdada dos séculos passados. Encontramos respaldo para essa análise em Foucault: “Há dezenas de anos que nós só falamos de sexo fazendo pose: consciência de desafiar a ordem estabelecida, tom de voz que demonstra saber que se é subversivo, ardor em conjurar o presente e aclamar um futuro para cujo apressamento se pensa contribuir” (Foucault, 1997, p. 12). Momento decisivo na organização do movimento gay ocorreu quando milhares destes invadiram as ruas de Nova Iork nos EUA, no final da década de 60 , dando o grito de independência dos gays com relação à tradição da heterossexualidade. Partindo para o confronto com as outras identidades de gênero, os gays lutaram por assumirem as suas identidades, constituindo uma orientação sexual diferente, mas politicamente legitimada.
Anthony Giddens (1992) considera esse fato como um reflorescimento da homossexualidade, visto que o mesmo é um processo real de conseqüências importantes para a sexualidade. A autodeterminação gay, segundo o autor, “... representa um exemplo reflexivo em que um fenômeno social pode ser apropriado e transformado através do compromisso coletivo”. Prosseguindo, o autor diz que: “Se definir como gay sugere um colorido, abertura, legitimidade, um grito muito diferente da imagem da homossexualidade antes sustentada por muito homossexuais praticantes, assim como pela maioria dos ‘indivíduos’ heterossexuais” (Giddens, 1992, p. 23). Nessa forma de se declarar a condição de gay, está subjacente o significante identitário de gênero. Segundo Giddens, nesse ato de autoproclamar-se gay, o indivíduo está proclamando o seu eu, a sua existência. Assim, através dessa liberação, os indivíduos gays tornam-se mais livres, abrindo a sexualidade para muitos outros propósitos.
Na era da AIDS, o gênero vem sendo tomado para discussão pelo fato do vírus causar fortes impactos sociais e morais, desvelando a intimidade dos sujeitos, e trazendo à luz determinadas práticas de vida que ao serem postas as claras forçaram a sociedade a um repensar dos seus princípios éticos, morais e culturais. De acordo com Parker e Galvão, (1996), Guimarães, (1992), e Carrara, (1994), o fenômeno da epidemia da AIDS remodela os modos da sociedade moderna pensar as suas normas e valores sociais, em particular a questão do gênero. A face masculina e feminina não é mais tratada como o foram em outras experiências de epidemias de teor semelhante.
Em função do reconhecimento cultural da homossexualidade no ocidente, o aumento do turismo sexual feito entre países do primeiro mundo e do terceiro mundo possibilitou maior integração do movimento gay. Isto inibiu por certo tempo a atenção que o movimento feminista dedicava ao poder masculino (Altman, 1995). Na história do imaginário social da AIDS, a questão feminina ficou escondida por muito tempo, só vindo a ser colocada na metade da primeira década da AIDS – 84-85 – ao serem identificados os bissexuais como uma categoria significativamente responsável por transmitir a infecção. A partir daí a questão da mulher portadora passou a ser discutida, principalmente no caso do Brasil (Guimarães, 1992).
Portanto, nesse intrincado fenômeno discursivo da epidemia da AIDS, começamos a perceber o delineamento de uma nova configuração para a questão do gênero. Consideramos importante reforçar nesse debate, os impactos sociais e morais causados pelo vírus do HIV sobre as representações de gênero da cidadania. Estes impactos favoreceram os homossexuais e os estimularam a se inserirem e se representarem na sociedade como uma categoria de gênero, ocupando um território há tanto tempo almejado (Rotello, 1997) .
Ao que tudo indica os preconceitos e a discriminação existente entre as categorias de gênero masculino e feminino e os homossexuais se remodela ao longo da experiência da AIDS. No grupo pesquisado, essa questão pode ser comprovada nas falas dos nossos entrevistados. Perguntados se achavam ter havido grupos de risco para o surgimento do HIV/AIDS, nove entre os doze do grupo de portadores entrevistados, (Germano, Clarice, Marcelino, Eugênia, Yanê, Vanessa, Alcides, Olimpio, e kátia) disseram não acreditar nesta hipótese. Para eles, riscos para se contaminar sempre houve, discordando que tenha sido apenas um único grupo – os homossexuais – os responsáveis pela AIDS, como pode ser observado nas seguintes falas:
Clarice: “Grupo de risco? Olhe..., eu acho que teve grupo de risco pra todo mundo, não foi só pra os homossexuais, ah! Isso eu não acreditei mesmo!”
Marcelino: “... No meu ponto de vista teve e ainda há grupos de risco. Mas eu acho que esses grupos de risco não é somente os homossexuais não. Eu sou do ponto de vista que eles já botaram isso de grupos de risco pra discriminar..., isso pra mim foi pra discriminar...”
Eugênia: “Grupo de risco é todo mundo, não é só os homossexuais. Qualquer um que pratique o sexo que não seja seguro foi e é ainda grupo de risco, né? Eu acho assim...”
Yanê: “Grupos de risco tem em todo mundo, são qualquer pessoa que usa droga, ou faz qualquer outra coisa, não usa a camisinha, é grupo de risco. Agora essa de ser só homossexuais, não é não, não é justo, é discriminação...”
Alcides: “Eu não acredito que era só de homossexual, não. É de todos, foi sempre de todos, a AIDS”
Kátia: “Sim, eu sei, se foi dos gays, não é? Olhe, eu acho que não... Eu acho que não tem essa de grupo de risco não, o risco é pra qualquer um, eu vejo assim entendeu?”
Percebe-se nesses depoimentos a existência explícita de solidariedade dos portadores para com as pessoas de orientações sexuais diferentes. Ao atribuírem a responsabilidade pela AIDS a toda a sociedade, eles conseguem fazer da diferença um elemento importante para a fixação de novas identidades.
3.3- As Sexualidades Colonizadas na Aids.
O termo “sexualidades colonizadas”, nos modos como estamos nos referindo aqui busca definir as formas do sexo ser tratado, pelas políticas da saúde, particularmente nos programas para tratamento e prevenção ao longo dessas duas décadas de AIDS. Ao ser diagnosticada em primeira instância como uma doença originada primeiramente da prática sexual – nos homossexuais masculinos –, a ciência da medicina tratou de estabelecer a partir da epidemia uma codificação ética e moral diversa para a prática do sexo. A partir desta codificação, a camisinha passou a ser a “super-star” no processo, garantindo com a prática do sexo seguro a segurança da não-infecção, em quase 100% dos usuários.
A teoria do sexo seguro se originou em primeira mão dos grupos gays norte-americanos como medida preventiva do grupo contra a AIDS. Foi, seguidamente, indicada como o método preventivo, por excelência, contra a epidemia, pela Organização Mundial de Saúde – OMS, devendo ser adotado por todos os países. Apesar de não se considerarem os responsáveis pelo fenômeno, como quiseram fazer crer os cientistas da medicina, os homossexuais masculinos concordaram com a idéia de tomar precauções, visto que muitos gays estavam morrendo inesperadamente não somente nos EUA, o que demonstrava a gravidade do fato (Rotello, 1997, Altman, 1995). Assim, os gays masculinos logo fizeram uso dos preservativos para não se infectarem com o vírus, divulgando no seu meio social a urgência de mudança de hábito das práticas sexuais, como medida de prevenção para o sexo seguro. “Usando a camisinha não se pega AIDS” (Rotello, 1997). Este autor é do pensamento de que mesmo considerando a orientação de sexo seguro com o uso da camisinha como uma medida discriminatória dos grupos antigays, os homossexuais viram nisso uma saída para se protegerem e não pegar AIDS.
Para Rotello (1997), os que procuravam criar a teoria do sexo seguro, os "antigays" , quase que se apropriaram da Aids como simbolismo para responsabilizar os homossexuais masculinos (gays) pelo fenômeno. De acordo com ele, o primeiro conselho explícito sobre a prevenção da AIDS apareceu em 1982, na forma de panfletos e circulares, publicados por um grupo de médicos, gays e lésbicas de São Francisco. “Os Médicos da Bay Area por Direitos Humanos pelos cidadãos de Houston, pela Igualdade Humana e pela Crise na Saúde dos Gays de Nova Iorque”. (Rotello, 1997, p 120). Este material enfatizava que a redução de parceiros deveria ser uma estratégia adotada para evitar a infecção. A circular foi distribuída pela Crise na Saúde dos Gays. Segundo Rotello, “... quanto menos parceiros diferentes, menor é seu risco de pegar uma doença...” “Além da redução de parceiros, os gays eram encorajados a ‘reconhecer’ seus parceiros e a examinar um o corpo do outro antes de praticar sexo, procurando evidencias de lesões e gânglios inchados, pois se presumia que a infecção produzia sinais visíveis”. (Rotello, 1997, p 121)
Estas foram as primeiras medidas de colonização da prática sexual no contexto da AIDS. Seguidamente, a partir da necessidade de estabelecer medidas para tratamento e prevenção, surgiram as propagandas na TV, as campanhas para prevenção, a distribuição de panfletos e de preservativos pelos órgãos públicos de saúde. Divulgaram-se notas em jornais e revistas de circulação semanal e outros mais, advertindo quanto a esse risco.
A experiência da AIDS impôs uma redefinição na identidade de gênero em relação ao gerenciamento da identidade sexual. Fazia-se necessário conhecer, investigar, monitorar o outro com quem se estava identificando eroticamente, a fim de se manter ou não relações sexuais. Isso a partir de um diagnóstico de infecção revelando que o contágio se deu no sexo. Pensar em outras conquistas, em amores com paixão e erotismo, passou a ser uma experiência bastante dolorosa tanto para as pessoas que estavam soropositivos quanto para as que já estavam com Aids. Questões relativas ao desejo sexual pelo outro, a pensar eroticamente o outro, e fazer o sexo, passaram a serem questões do domínio público. O outro, o ser erotizado objeto das fantasias e do desejo sexual, passou a ser tratado como o representante do perigo da morte iminente, porque a “Aids Mata”, era o que diziam as notícias veiculadas pela mídia.
Assim, no plano da conquista da vida erótica, aquele que inspirava o amor e as fantasias eróticas, passou a ser apresentado como “estranho” contra quem tinha de se prevenir mantendo-se cuidadoso nos mínimos detalhes. De forma que, quando o assunto era transar, viver o erotismo, a palavra de ordem era: cuidado com o outro! O perigo está muito próximo de você, pode estar na sua cama. De acordo com Rotello (1997), isto gerou preconceito e discriminação. A AIDS desnudou a intimidade, tornou a sexualidade um problema de saúde pública, devendo a partir de o seu surgimento ser resolvido na esfera pública. Esse problema resultou no desalento das pessoas quanto as expectativas de vida amorosa, plena e feliz. Os portadores foram vendo surgir medidas de prevenção, que foram se configurando em atitudes de colonização da vida intima, com indicações para o modo de como transar, com quem, e de que modo transar.
Em face de tal colonização da vida pessoal, os portadores, em determinados estágios da condição de saúde – pela sua carga viral, ou seu CD4 muito baixo, e ainda pelo próprio cuidado com o outro (portador, ou não) –, começam a não querer dar prosseguimento ao exercício da sua sexualidade, o que se agrava muito mais quando a contaminação ocorre através do sexo. E, quando isso decorre de uma traição conjugal, a situação de desolação e negação, ou de desinteresse pelo sexo, é cada vez mais acentuada.
O desejo de ter uma vida sexual normal, intensa, com grandes momentos de prazer, de alegria perde o seu encanto e colorido, pois o medo de contaminar o outro, ou de se reinfectar é muito presente no imaginário do portador. Apesar de já se estar no final da segunda década de AIDS, o uso da camisinha ainda não faz parte do imaginário erótico coletivo. De forma que as mulheres sentem dificuldades em negociar com os seus parceiros o uso do preservativo, e os parceiros ainda não aceitam a possibilidade de ter que usá-lo, o que geralmente vem dificultando a vida sexual dos casais. Observa-se que as orientações que são dadas por médicos e agentes de saúde não alcançam o seu objetivo satisfatoriamente, visto que as mesmas são pensadas para o monitoramento das sexualidades alheias apenas com uma intenção: evitar a infecção e a reinfecção. Ao se propor o sexo seguro, a idéia que vem subjacente é a de que o mesmo tem de ser praticado com racionalidade, sem prerrogativas para as fantasias e o imaginário erótico que estimulam o desejo de fazer sexo.
A questão da colonização da sexualidade pode ser observada no quadro a seguir, através dos indicadores que tratam dos modos como as pessoas vêem suas vidas sexuais na condição de portadores do HIV/AIDS. Esses indicadores revelam os efeitos que essa nova condição causa nas vidas do homem e da mulher, no modo como respondem aos efeitos causados pela infecção, nas mudanças que eles observaram na sexualidade, se houve ou não continuidade em suas vidas sexuais:
Quadro 3
Efeitos do HIV/AIDS na Sexualidade dos Portadores
Portadores Indicador 1 - Como o homem e a mulher vêem a Sexualidade no HIV . Indicador 2- Efeitos do HIV na Sexualidade: homem e mulher.
Germano O homem reage diferente da mulher. Não teve nenhum problema.
Jamerson A mulher vê igual ao homem. Anulou a minha vida Sexual.
Clarice O homem aceita igual à mulher. A minha vida sexual esfriou; fiquei fria.
Bernardo Homens e mulheres vêem sob a mesma condição. Alterou muito minha vida Sexual.
Marcelino A mulher vê diferente do homem: ela é vítima. Alterou demais a minha vida sexual.
Giovanni É diferente: a mulher é vítima. Mudou demais a minha vida sexual.
Eugênia Vê diferente. A mulher fica se culpando. Alterou muito a minha vida sexual.
Yanê É a mesma coisa. É uma dificuldade só pra os dois. Muda o sexo: a gente tem que se prevenir.
Vanessa O homem vê diferente da mulher, ele é mais ativo. Mexeu demais com a minha vida sexual.
Alcides Não sei bem, mas acho que é diferente. Não teve nenhum problema para mim.
Olímpio Eu acredito que todos vêem do mesmo jeito. Tive que parar a minha vida sexual.
Kátia Eu acho que é a mesma coisa; os dois vêem do mesmo modo. Parei de fazer sexo para não contaminar os outros.
Fonte: Pesquisa Aids, Gênero, Exclusão- na redefinição da Identidades dos portadores, com base nos depoimentos dos entrevistados.
Neste quadro, vemos que os efeitos do HIV/AIDS na vida dos portadores causam reações comportamentais bastante desanimadoras na vida sexual. No indicador número um, as opiniões sobre os modos de homens e mulheres verem o sexo após a infecção, as opiniões se dividem proporcionalmente. De forma que uma metade dos entrevistados Jamerson, Clarice, Bernardo, Yanê, Olimpio, e Kátia é da opinião que o homem e mulher vêem o sexo de modo igual depois do HIV/Aids: A outra metade: Germano, Marcelino, Giovanni, Eugênia, Vanessa, e Alcides, é da opinião de que o homem e a mulher vêem de modo diferente. Entre estes últimos, chamam a nossa atenção os depoimentos de Eugênia, Marcelino, e Giovanni, pelo fato dos três justificarem a sua opinião sob a alegação de que a mulher é vítima.
Observando o segundo indicador, vemos que dez dos portadores entrevistados se queixaram dos efeitos que o vírus causou em suas vidas sexuais. Como já discutimos acima, a perda do contato com a sexualidade, com as fantasias eróticas, cria um sentimento de vazio e de inutilidade muito grande na vida dos portadores. Porém, esses efeitos não perduram para sempre. Superados os impactos iniciais ao recebimento do diagnóstico, quando os portadores já se encontram mais restabelecidos, o desejo de retomar as suas vivências sexuais reacende o que significa dizer que as pessoas estão retomando as suas vidas.
A consciência da sexualidade não deixa de existir porque as pessoas pegam AIDS. Por certo que todos passam por situações desgastantes em face de essa realidade, com muitas inquietações, com receios de que não voltarão mais a fazer o sexo como vemos no quadro acima. Porém, a partir da superação dos primeiros efeitos, como já citamos anteriormente, o desejo volta às fantasias eróticas também. As pessoas procuram dar continuidade à sexualidade “sadia”, nos limites do que esse desejo possa significar para alguém que conhece os riscos da infecção.
um estudo sociológico das experiências identitárias
de Pessoas vivendo com HIV?AIDS em Recife.
Capítulo 04
O GÊNERO NA AIDS
O gênero na AIDS é uma discussão que vem sendo bastante polemizada nos espaços sociais. De início, pela predominância da presença masculina configurada nas expressões do homossexualismo e do bissexualismo. Depois, com a aparição da mulher no cenário que, de acordo com alguns estudiosos (Guimarães, 1994, Parker e Galvão, 1996), entrou tardiamente na discussão, sem nunca ter estado fora dela.
Na AIDS, algumas questões predominam quando se trata de discutir o gênero. São primeiro, as que dizem respeito à prática do sexo (que na AIDS tem que ser seguro) com o uso da camisinha, segundo, as que dizem respeito aos parceiros ( a questão do grupo de risco, atualmente já reconfigurada na discussão), e, terceiro, as relações monogâmicas entre as pessoas unidas judicialmente. Melhor dizendo, as relações de aliança .
Este capítulo será dividido em três seções. Na primeira, abordamos os aspectos referentes à vida pessoal e social da mulher soropositiva a partir dos impactos causados pelo vírus HIV. Tomamos como referência de análise os depoimentos do grupo que entrevistamos, buscando identificar tanto o comportamento dos atores ao se descobrirem soropositivos, como as prioridades eleitas para suas vidas a partir dessa nova situação. Na segunda, trataremos dos reflexos produzidos pelo HIV na vida das pessoas de orientações sexuais homossexuais, e de como estes, ao longo dessas duas décadas de AIDS, vêm forçando a sociedade a aceitá-los como uma categoria de gênero socialmente sancionada. Na terceira, buscamos ver como a sexualidade vem sendo tratada, como vem sofrendo o impacto das campanhas e das instruções que são dadas pelos agentes de saúde – médicos, enfermeiros, assistentes sociais, psicólogos – sobre a prática de sexo seguro (que cria antagonismos no erotismo entre os parceiros). Veremos, também, a influência da questão dos grupos de risco, contidas nas propagandas e campanhas dos governos. Buscaremos ver, ainda, como os indivíduos resolvem a questão de gênero nessa nova realidade, e como lidam com as mudanças que sofrem nas suas sexualidades ao receberem o diagnóstico de soropositivos. Em que situações cotidianas foram mais afetadas e como se confrontam no sexo ao ter que usar a camisinha. Tomamos também como referencial de análise os depoimentos do grupo entrevistado.
3.1- A Condição Feminina na AIDS.
A condição da mulher soropositiva vem sendo bastante discutida ao longo dessa segunda década de AIDS. A cada dia aumenta mais o número de mulheres infectadas pelo vírus. Esse fato se explica pela comprovação das relações extraconjugais, configuradas na traição hetero/bissexual. De acordo com o último informativo do Ministério da Saúde, o número de mulheres infectadas, no Brasil já chegou quase ao mesmo nível de igualdade dos homens, de forma que nas duas categorias os dados demonstram o seguinte: em 1983, a razão de casos entre homens e mulheres foi de 17:1, enquanto para o ano de 1997, encontramos 2 casos em homens para 1 caso em mulheres . O que nos leva a concluir que as relações de gênero que permeiam a nossa cultura, essencialmente machista, são de prevalência do poder masculino sobre o feminino, sugerindo não existir negociações do uso da camisinha entre os parceiros para garantia do sexo seguro.
Tal realidade referenda a idéia de que o homem pode naturalmente continuar a ter relações sexuais extraconjugais, enquanto a mulher permanece à mercê dos efeitos que essas condutas poderão trazer à sua vida. Assim, comprova-se cada vez mais o aumento do número de mulheres que através dos seus parceiros fixos contraíram o HIV, com riscos para elas e para os seus filhos. Este fato aponta para a questão da verticalização da AIDS .
A inclusão da mulher na discussão da AIDS, no Brasil, é considerada tardia por diversos estudiosos no assunto. Guimarães (1994), Parker e Galvão (1996), vêm, ao longo desses últimos anos, tentando mostrar que mais uma vez a mulher sofre exclusão pela sua condição de gênero. Segundo estes autores, as políticas públicas de saúde para a mulher soropositiva no Brasil, ainda não são as mais adequadas para atender as necessidades da mulher em suas diversas dimensões sociais e culturais. O que deixa as mulheres expostas a contraírem todo tipo de doenças sexualmente transmissíveis. Ao longo da história, as mulheres sempre pagaram o ônus pelas peripécias sexuais dos homens, o que vem sendo comprovado em várias situações de surtos de epidemias de doenças sexualmente transmissíveis como a sífilis, a herpes genital, a gonorréia, a candidíase ( Carrara, 1994). De modo que a mulher sempre teve a saúde sob risco, sempre estiveram as voltas com doenças sexualmente transmissíveis, adquiridas através dos seus parceiros.
Com a AIDS, a condição de precariedade na saúde feminina é reconfigurada. A mulher passa mais uma vez a ser exposta às intempéries da vida, em função do comportamento sexual masculino. Segundo Guimarães, “muitos dos fatores que predispuseram as mulheres a terem uma saúde precária no passado, agora aumentam a sua vulnerabilidade à infecção pelo HIV/AIDS, sendo os principais aqueles calcados no relacionamento de gêneros, no status feminino e nas suas condições de vida” (Guimarães, 1994, p. 220).
Sendo o homem suscetível biologicamente a se infectar com o vírus do HIV, a transmissão deste para a mulher é muito mais comum do que da mulher para ele. O que denota que há um desequilíbrio sociológico de forças entre o homem e a mulher, que só agrava sensivelmente a situação das mulheres para o HIV. Isso pode ser deduzido do fato de que a dependência econômica da mulher e a normatização pela sociedade dos padrões comportamentais diferenciados para homens e mulheres, colocam estas duas representações de gênero em situação de desigualdade, com o risco maior e permanente para a mulher. Estamos comprovando esta situação a cada dia pela equiparação do número de infectados: homens e mulheres , com estas quase assumindo a prevalência.
A vulnerabilidade das mulheres em face de tão delicada situação é a prova de denúncia e de necessidade de reversão do quadro. Apesar de no passado a infecção pelo HIV/AIDS ter sido considerada como uma doença da responsabilidade dos homo/bissexuais, dos usuários de drogas e de outros grupos de profissionais do sexo considerados de “alto risco”, é nessa segunda década de Aids que se vê o vírus HIV como uma grave ameaça às mulheres sexualmente ativas, inclusive as que são monogâmicas. Este fato aponta para um reconhecimento social das outras orientações e práticas sexuais, negadas socialmente, mas postas às claras a partir da AIDS .
A partir dos anos 90, a feminização da AIDS tem sido o grande viés discursivo do Movimento Feminista, de organizações não-governamentais e de outros grupos que lutam por políticas públicas de saúde que atendam as mulheres soropositivas em suas necessidades básicas de assistência a saúde ginecológica: prevenção de câncer de colo uterino, de mamas, e tratamentos de doenças sexualmente transmissíveis. Paralelo a isso, busca-se a elaboração de campanhas que esclareçam as mulheres sobre a necessidade de negociações do uso da camisinha com os seus parceiros. Busca-se, também, conscientizar os homens tanto dos seus comportamentos irreverentes para com as mulheres como da necessidade dos mesmos repensar as suas práticas sexuais, como prevenção. Ao que se observa o homem vem se mantendo ao longo dessas duas décadas de HIV/Aids como o senhor todo poderoso de um passado sociocultural que já vai muito distante, mas que permanece intocável, sendo ele o grande veiculador desses desencontros todos (Parker e Galvão, 1996).
O que é notório em toda discussão do comportamento do homem e da mulher, seja na AIDS ou em outra realidade qualquer, é a falta de esclarecimentos da mulher sobre os seus direitos sociais. Ou seja, a mulher ainda não demonstra politização e consciência em relação a todos os abusos que sofre no contexto da dominação de gênero. Isto aponta para a questão social e política da identidade de gênero e para a falta da consciência da cidadania ativa na formação educacional da mulher, em geral.
Observa-se, nesta segunda década de AIDS, que as mulheres estão se aproximando cada vez mais dos homens, mas não como uma conquista resultante das lutas incessantes dos grupos feministas organizados por direitos iguais, e, sim, pelo aumento do percentual de mulheres contaminadas com o HIV/AIDS, o que reforça a frustração da mulher face à perversão do machismo.
No nosso trabalho, num grupo de doze portadores entrevistados tivemos sete heterossexuais, dos quais quatro são do sexo feminino. Observamos que as mulheres infectadas pelos seus companheiros reduzem o problema a um drama existencial, sem colocarem as questões políticas subjacentes. Não registramos nenhuma outra queixa das mesmas contra os homens que as infectaram, que não seja o desabafo e a tristeza. Passados os primeiros impactos de recebimento do diagnóstico, as mulheres retomaram a vida sexual com seus parceiros. Outras cuidaram deles com desvelo até a morte. Foi o que observamos nos casos de Kátia, Clarice e Eugênia, durante as entrevistas. Quando lhes perguntamos sobre o que elas sentiram quando se souberam infectadas pelos seus companheiros responderam:
Kátia: “Quando eu soube? Eu fiquei com raiva, na mesma hora quando eu soube eu fiquei com muita raiva, entendeu como é?....Eu fiquei muitos dias pensando.... pensando.... Mas, depois eu pensei e eu disse: acho que não, aconteceu só. Ele dizia que gostava muito de mim, agente vivia bem, então...Eu na verdade não sei. Eu gostava dele, tinha muito cuidado por ele, só não posso responder da parte dele por mim. Depois que ele se internou eu redobrei os meus cuidados por ele, ia para o hospital, cuidava dele, dava comida na boca dele, tudinho....Ele morreu eu segurando nas mãos dele, entende? Foi isso...”
Clarice: “Eu quando soube chorei muito! Me deu uma angústia tão grande no meu coração, um desespero....Até hoje eu não me conformo mesmo! Fiquei muito desesperada e não me conformo, de jeito nenhum!...Porque ele fez o exame lá em Maceió, tá entendendo? Ai confirmou que ele estava com o vírus, então ele veio embora de vez e não disse nada a mim que tinha feito exame, e eu também não podia saber que eu tava....Quem cuidou dele fui eu mesma...Quem tomou conta dele fui eu né? Fui eu e Deus. Um ano de luta. Pra tudo: hospital, médico, exame para internamento, tudo fui eu...Ninguém me obrigou. Eu tomei conta porque eu achava que era o meu dever de esposa. Era meu dever, ele era o pai dos meus filhos e eu não ia deixar ele com um problema desses abandonado...Como muita gente me disse: tá vendo eu, se fosse tu....ele tava lá com a outra, porque ele não ficou lá com a outra pra ela tomar conta dele? Não, veio simbora, veio simbora pra quem tomar conta? pra tu tomar conta. Tanta mulher que ele teve porque uma delas não toma conta dele?....Não, ninguém me obrigou, eu tomei porque achei que era o meu dever de esposa”.
Eugênia: “Olhe... foi um horror! A gente fica, né? Você não imagina que o outro pode fazer isso com agente, mas ele faz. Fica muito difícil, porque agente passa a ter relações sexuais com o preservativo e existe uma resistência muito grande da pessoa em aceitar.... No meu companheiro..., existe uma resistência muito grande, ele diz que incomoda, por que é que tem de usar isso e tal... Tem preconceitos por ter que usar essas coisas, né?... Fica muito difícil pra mim....Porque eu digo: então não tem!. Se não usar a camisinha, não tem! É difícil! Agente tenta aqui e acolá... Vai dando um jeito....Eu uso a camisinha feminina pra ver se fica melhor, mas ai...É muito difícil tudo isso!”
Observamos nos relatos destas três mulheres que não há uma indignação pelo fato dos seus maridos as terem infectado. Há um sentimento de dor e tristeza ao se comprovarem contaminadas, mas que é sobrepujado pela suas condições de companheiras que se percebem responsáveis por esses homens. Tal comportamento remete à discussão do papel da mulher enquanto mãe de todos, no lar. A mulher não demonstra ter como referência a questão da desigualdade social entre ela e o homem, para, a partir dai estabelecer uma atitude de indignação face ao desrespeito com que é tratada. Assim, o que elas priorizam (e isso pode até funcionar como uma defesa delas mesmas no sentido de não se reconhecerem como traídas e ofendidas), é a dedicação exclusiva aos seus maridos, independente de qualquer outra coisa, e o fato deles as haver infectado não conta nesse momento. Observamos também a predominância da relação de alianças (Knauth, 1996). Isso está bem visível na fala de Clarice quando a mesma enaltece o seu papel de esposa e mãe.
Quanto à outra mulher entrevistada – Yanê, infectada pelo seu noivo, não observamos grandes novidades. Na experiência de Yanê as coisas ficaram num certo anonimato, visto que ela só soube que poderia estar infectada após terminar o seu noivado. Alguns dias depois o seu ex-noivo passou a lhe telefonar dizendo que ela iria morrer de AIDS, fato esse ao qual a mesma não deu importância, como ela mesma relata:
Yanê: “Foi ruim, viu, na época foi horrível...Eu era noiva...Eu acho que eu peguei com ele, meu ex-noivo. Eu era noiva e de repente o noivado acabou, e ele depois do noivado acabado começou a mandar recadinho pra mim dizendo: ah, você vai morrer de Aids, a Aids vai matar você, num sei que mais...Ai logo em seguida, com uns dias começou os problemas na minha saúde....Eu nem quis pensar...não acreditei que o que ele falava fosse verdade..., mas foi né? ...Eu deixei ficar como tava...fazer o quê?, né?...”
O fato dessa mulher não procurar tomar conhecimento do que realmente estava acontecendo, denota a falta de conscientização da cidadania e dos seus direitos sociais. As mulheres estão sempre conciliando as situações, buscando soluções paliativas. Ajudam visivelmente os seus companheiros na superação de determinadas realidades, muitas das quais são de inteira responsabilidade dos mesmos, visto que foram eles que as infectaram como estamos observando na experiência destas portadoras.
No material pesquisado, observamos, também, que as mulheres portadoras elegem prioridades em função da suas vidas domésticas e da necessidade de dedicar maior tempo aos filhos e ao lar. Foi o que observamos em Clarice, Kátia e Eugênia, quando lhes perguntamos sobre o que é mais importante para elas após o HIV/Aids:
Clarice: “Olhe, hoje eu queria poder voltar a viver bem a minha vida, ter uma casa só pra mim, ter um companheiro. Mas, eu penso mesmo é nas minhas filhas. Fico preocupada com a vida das minhas filhas, da minha netinha. Tenho medo que elas peguem essa maldita doença. Eu sempre procuro alertar elas. Eu digo pra ela, a mais velha: olhe minha filha, você se cuide. Não vá transar com ele (o marido da filha) sem usar a camisinha, não. Sinto-me sem apoio, não tenho aconchego de ninguém, nem carinho, é muito ruim isso. Eu quero ver os meus filhos felizes” .
Eugênia: “Ooooolhe! É a família. Eu procuro cuidar mais de minha família, dar mais segurança pra eles. Cuidar da minha família....Ver os meus filhos se formar, cada um concluir o curso que começou, fazer outros, ver o meu filho que teve aquele problema que eu lhe falei (o filho tentou o suicídio quando soube que ela estava com Aids), muito bem. Mas a minha preocupação mesmo...., assim... é com relação a segurança da minha família. É o que acho mais importante, é a minha família. Que essa preocupação já existia antes do HIV, né? Mas agora ela fica sendo ainda mais forte, mais importante, porque é a questão da segurança...”
Kátia: “Olhe, o que eu tinha de viver eu já vivi, já sofri, já me diverti, já passeei, eu já fiz tudo. Agora, o restinho da vida que eu tenho eu quero curtir muito os meus dois filhos. O que eu quero é poder dar o melhor pra eles. O que eu tiver eu vou dar. Vou andar, lutar pra conseguir algumas coisas mais, vou ver se fico recebendo uma Sexta básica que é distribuída aqui. Eu vou lutar, e enquanto eu puder batalhar pra dar à eles uma vida melhor eu vou fazer isso. É o meu sonho cumprir a minha obrigação de cuidar deles até quando eu puder.”
Nesses recortes, observamos como são pertinentes para a identidade feminina as prioridades eleitas pelas mulheres a partir das suas condições de portadoras. Conscientes do fato de que a realidade da AIDS desnuda a intimidade, e lhes põe sob a iminência da morte, (Paiva, 1992) as mulheres reforçam atitudes tradicionais de “donas de casa”, voltando-se para os outros com os quais convivem: amar e cuidar acima de qualquer coisa dos filhos e companheiros. Essa atitude de reforço de antigos padrões passa a ser a solução mais imediata e coerente para elas. Nas produções literárias sobre o assunto, trazidas ao público leitor nessas duas últimas décadas de epidemia de Aids (Ferreira, 1994, Camargo, 1994, Paiva, 1992), encontramos uma infinidade de relatos de como as mulheres repensam suas vivências cotidianas, como fazem seus planos para um futuro que lhes é incerto, e como elegem suas famílias como prioridades. Para tanto, suas vidas pessoais e sociais são pensadas sempre tendo a família como o centro principal das atenções, especialmente os filhos, como observamos nos depoimentos acima.
A condição feminina na AIDS não mudou a sua face, mesmo a mulher se aproximando sempre mais do homem pela infecção, como nos mostram cada vez mais as pesquisas. Segundo o que vem sendo discutido ao longo dessa segunda década da epidemia por certos autores (Parker e Galvão, 1996; Guimarães, 1992; Barbosa e Villela, 1996), a questão da Aids tem sido encarada, pelo menos no imaginário social, como um fenômeno masculino. O que pode ser explicado pelo fato do homem ter sido chamado primeiro à discussão pela questão dos grupos de risco: os homossexuais masculinos. A imagem de promiscuidade e transgressão passada por este grupo tendia a reforçar intensamente as noções populares acerca da sexualidade masculina (Parker e Galvão, 1996).
A relação entre as mulheres e o HIV/AIDS é envolvida por um silêncio marcante na sociedade brasileira. Os agentes sociais (das OGs e ONGs) que atuam nessa questão da AIDS (Parker e Galvão, 1996) encontram muitas dificuldades para quebrar este padrão. Entre alguns fatores apontados para explicar o silêncio feminino, está o relacionado às campanhas e propagandas governamentais, que sempre visaram o estímulo da prática da prevenção para o sexo seguro por parte do homem. Nestas campanhas, as mulheres permaneceram como o símbolo da representação sexual que ameaçava a invulnerabilidade masculina. Mulheres de rostos belos e corpos esculturais simbolizavam o risco do homem contrair a infecção caso transasse com elas, como anunciava a propaganda: “Quem Vê Cara Não Vê AIDS” . O silencio feminino na AIDS aponta para a existência na cultura brasileira de representações sociais fundamentadas em juízos de valores diferenciados para homens e mulheres. Isto contribui para que determinados atributos morais sofram uma classificação de gênero, sendo uns delegados à masculinidade e outros, à feminilidade, o que influi nos processos formadores da identidade.
3.2- AIDS: a questão dos “diferentes”
O gênero, na AIDS, faz emergir a discussão sobre a questão social e normativa referente à prevenção e tratamento, o que foi devidamente codificada e sancionada pelo Center for Disease Control – CDC. Este tomou como referência a fisiologia do homem, especialmente o do Primeiro Mundo (Guimarães, 1992), para diagnosticar e elaborar tratamentos para a AIDS. Essa normatização científica classificou o gênero em três categorias: heterossexual, homossexual, e bissexual, sendo esses os termos oficiais usados para o uso clínico na ciência médica. Essa classificação apenas viria a ser conhecida nos países de Terceiro Mundo, entre eles o Brasil, a partir da década de 70. Tal classificação funcionou como um elemento de grande significação para a identidade gay, em luta pelo reconhecimento institucional da sua categoria.
Ao que tudo indica, essa forma de reclassificação das categorias de gênero favorece as diferentes orientações sexuais, abrindo espaço para o reconhecimento político e institucional do homossexualismo como nova identidade de gênero. Observa-se que apesar da intolerância social que os gays (masculinos e femininos) vêm sofrendo por possuírem orientações sexuais diferentes daquelas canonizadas pela tradição machista, a luta pelo reconhecimento avança. Os impasses iniciais causados pela atribuição da responsabilidade pelo surgimento da Aids aos gays, só vieram fortalecer a luta dos mesmos por um “lugar ao sol”.
Na experiência da AIDS, o gênero – por ser uma categoria extremamente demarcada culturalmente – faz diferença social entre os indivíduos. A relação de causalidade estabelecida entre a AIDS e os homossexuais masculinos, responsabilizados pelo surgimento do HIV e classificados como “Grupo de Risco” pela ciência da medicina, gerou evidente mal-estar. O gênero passou, em função disso, a ser redescutido na mídia, resultando no fortalecimento político da categoria dos homossexuais, que já viviam em luta acirrada pelo reconhecimento social da identidade “Gay” com os poderes públicos nos EUA, na Europa, e, também, no Brasil.
Nesse clima, fica notório que a AIDS ao ser definido, numa primeira instância, como uma peste trazida pelos gays masculinos, favoreceu uma maior abertura para que essa categoria se represente e milite na esfera pública, superando a repressão sexual do passado. (Daniel e Parker 1991, Altman, 1995, Rotello, 1997).
No debate da questão do gênero não se pode mais ignorar certas questões: orientações sexuais diferentes, o exercício de outras práticas do sexo, o reordenamento das relações afetivas. As representações tradicionais de gênero fundadas no heterossexualismo parecem insuficientes para evitar o estabelecimento de novas representações que introduzem o imaginário do homossexualismo.
No grupo que entrevistamos tivemos quatro portadores representando a identidade homossexual: Jemerson, Giovanni, Vanessa, e Olímpio. Desses quatro, três não tiveram nenhuma dificuldade em reconhecerem a sua identidade homossexual e em expressarem os seus desejos de (re) organizarem as suas vidas sociais e afetivas para o futuro, almejando, ao lado um companheiro. Como eles próprios disseram:
Giovanni: “Eu estava com dez anos de idade quando eu comecei a pegar as revistas do meu irmão mais velho, revista de homem com homem, homem com mulher, e eu olhava e eu achava os homens nus e as mulheres nuas lindas, e sempre achei interessante no homem... é... a forma do corpo, assim todo cabeludo, barba, bigode, aquele jeito assim..., mexia muito comigo. Atraía-me, desde pequeno me atraía, mas eu achava que aquilo ali era feio, não podia fazer, não podia pensar, e me atrapalhou muito isso... quando eu vim descobrir que eu era homossexual mesmo, eu já tinha 22 anos, quando eu saí do quartel. Foi que eu vim descobrir que eu era homossexual, já depois de adulto.... Hoje eu penso em duas coisas para o meu futuro: a cura da Aids, e encontrar um companheiro, uma pessoa legal, que me ame e eu possa amar, é importante ter um amor pra ser feliz....”
Olimpio: “É porque eu..., eu, eu..., quando eu era garoto eu... eu tinha um relacionamento já desde criança com pessoas do mesmo sexo, certo? Isso foi proliferando, e hoje isso se tornou mais aberto, mais claro pra mim....Eu sou homossexual, é assim que eu me identifico: homossexual mesmo!... eu tenho um sentimento feminino dentro de mim... O mais importante nessa nova fase da minha vida é ter um lar que é o que eu preciso, e ter alguém pra poder me ajudar nos meus momentos de sofrimentos... um companheiro. Isso eu considero mais importante: é um lar, é alguém pra compartilhar um pouco da minha vida, cuidar da minha saúde e ser muito feliz junto dele, né?”
Vanessa: “Eu sou travesti, fui profissional do sexo por muitos anos. De 81 a 92, onze anos, onde eu conseguia me realizar, foi onde eu consegui me realizar mesmo! (risos). Eu me realizei de três formas: Eu consegui me realizar financeiramente, amorosamente, que eu era muito frustrada no sexo, e eu passei....a partir dessa nova profissão eu passei a me realizar demais, como eu queria....Eu não fui ser travesti por opção, porque tem pessoas que vai ser travesti pra sobreviver...Mas eu não optei por ser travesti, eu já nasci com tendências femininas...Eu tinha fantasias, eu queria ter um namorado, eu queria andar de braços dados pelo meio da rua, de mãos dadas, eu queria ir no cinema, na boate, eu queria ser e poder viver como um travesti! Eu quero continuar assim, como eu sou: a lua! Encantando todo mundo, como a música diz. Amar e ser amada, namorar, ter um companheiro, como eu já tenho, né? que me ame muito, e eu a ele, claro...”
Observamos que esses depoimentos apontam para o fato de que a identidade gay emerge na sociedade como uma realidade definida, que se impõe como algo incontestável. Ao se autodenominarem “gay” os indivíduos desejam mostrar tanto suas liberdades de expressão como a libertação dos interditos de uma moral social e sexual repressora, herdada dos séculos passados. Encontramos respaldo para essa análise em Foucault: “Há dezenas de anos que nós só falamos de sexo fazendo pose: consciência de desafiar a ordem estabelecida, tom de voz que demonstra saber que se é subversivo, ardor em conjurar o presente e aclamar um futuro para cujo apressamento se pensa contribuir” (Foucault, 1997, p. 12). Momento decisivo na organização do movimento gay ocorreu quando milhares destes invadiram as ruas de Nova Iork nos EUA, no final da década de 60 , dando o grito de independência dos gays com relação à tradição da heterossexualidade. Partindo para o confronto com as outras identidades de gênero, os gays lutaram por assumirem as suas identidades, constituindo uma orientação sexual diferente, mas politicamente legitimada.
Anthony Giddens (1992) considera esse fato como um reflorescimento da homossexualidade, visto que o mesmo é um processo real de conseqüências importantes para a sexualidade. A autodeterminação gay, segundo o autor, “... representa um exemplo reflexivo em que um fenômeno social pode ser apropriado e transformado através do compromisso coletivo”. Prosseguindo, o autor diz que: “Se definir como gay sugere um colorido, abertura, legitimidade, um grito muito diferente da imagem da homossexualidade antes sustentada por muito homossexuais praticantes, assim como pela maioria dos ‘indivíduos’ heterossexuais” (Giddens, 1992, p. 23). Nessa forma de se declarar a condição de gay, está subjacente o significante identitário de gênero. Segundo Giddens, nesse ato de autoproclamar-se gay, o indivíduo está proclamando o seu eu, a sua existência. Assim, através dessa liberação, os indivíduos gays tornam-se mais livres, abrindo a sexualidade para muitos outros propósitos.
Na era da AIDS, o gênero vem sendo tomado para discussão pelo fato do vírus causar fortes impactos sociais e morais, desvelando a intimidade dos sujeitos, e trazendo à luz determinadas práticas de vida que ao serem postas as claras forçaram a sociedade a um repensar dos seus princípios éticos, morais e culturais. De acordo com Parker e Galvão, (1996), Guimarães, (1992), e Carrara, (1994), o fenômeno da epidemia da AIDS remodela os modos da sociedade moderna pensar as suas normas e valores sociais, em particular a questão do gênero. A face masculina e feminina não é mais tratada como o foram em outras experiências de epidemias de teor semelhante.
Em função do reconhecimento cultural da homossexualidade no ocidente, o aumento do turismo sexual feito entre países do primeiro mundo e do terceiro mundo possibilitou maior integração do movimento gay. Isto inibiu por certo tempo a atenção que o movimento feminista dedicava ao poder masculino (Altman, 1995). Na história do imaginário social da AIDS, a questão feminina ficou escondida por muito tempo, só vindo a ser colocada na metade da primeira década da AIDS – 84-85 – ao serem identificados os bissexuais como uma categoria significativamente responsável por transmitir a infecção. A partir daí a questão da mulher portadora passou a ser discutida, principalmente no caso do Brasil (Guimarães, 1992).
Portanto, nesse intrincado fenômeno discursivo da epidemia da AIDS, começamos a perceber o delineamento de uma nova configuração para a questão do gênero. Consideramos importante reforçar nesse debate, os impactos sociais e morais causados pelo vírus do HIV sobre as representações de gênero da cidadania. Estes impactos favoreceram os homossexuais e os estimularam a se inserirem e se representarem na sociedade como uma categoria de gênero, ocupando um território há tanto tempo almejado (Rotello, 1997) .
Ao que tudo indica os preconceitos e a discriminação existente entre as categorias de gênero masculino e feminino e os homossexuais se remodela ao longo da experiência da AIDS. No grupo pesquisado, essa questão pode ser comprovada nas falas dos nossos entrevistados. Perguntados se achavam ter havido grupos de risco para o surgimento do HIV/AIDS, nove entre os doze do grupo de portadores entrevistados, (Germano, Clarice, Marcelino, Eugênia, Yanê, Vanessa, Alcides, Olimpio, e kátia) disseram não acreditar nesta hipótese. Para eles, riscos para se contaminar sempre houve, discordando que tenha sido apenas um único grupo – os homossexuais – os responsáveis pela AIDS, como pode ser observado nas seguintes falas:
Clarice: “Grupo de risco? Olhe..., eu acho que teve grupo de risco pra todo mundo, não foi só pra os homossexuais, ah! Isso eu não acreditei mesmo!”
Marcelino: “... No meu ponto de vista teve e ainda há grupos de risco. Mas eu acho que esses grupos de risco não é somente os homossexuais não. Eu sou do ponto de vista que eles já botaram isso de grupos de risco pra discriminar..., isso pra mim foi pra discriminar...”
Eugênia: “Grupo de risco é todo mundo, não é só os homossexuais. Qualquer um que pratique o sexo que não seja seguro foi e é ainda grupo de risco, né? Eu acho assim...”
Yanê: “Grupos de risco tem em todo mundo, são qualquer pessoa que usa droga, ou faz qualquer outra coisa, não usa a camisinha, é grupo de risco. Agora essa de ser só homossexuais, não é não, não é justo, é discriminação...”
Alcides: “Eu não acredito que era só de homossexual, não. É de todos, foi sempre de todos, a AIDS”
Kátia: “Sim, eu sei, se foi dos gays, não é? Olhe, eu acho que não... Eu acho que não tem essa de grupo de risco não, o risco é pra qualquer um, eu vejo assim entendeu?”
Percebe-se nesses depoimentos a existência explícita de solidariedade dos portadores para com as pessoas de orientações sexuais diferentes. Ao atribuírem a responsabilidade pela AIDS a toda a sociedade, eles conseguem fazer da diferença um elemento importante para a fixação de novas identidades.
3.3- As Sexualidades Colonizadas na Aids.
O termo “sexualidades colonizadas”, nos modos como estamos nos referindo aqui busca definir as formas do sexo ser tratado, pelas políticas da saúde, particularmente nos programas para tratamento e prevenção ao longo dessas duas décadas de AIDS. Ao ser diagnosticada em primeira instância como uma doença originada primeiramente da prática sexual – nos homossexuais masculinos –, a ciência da medicina tratou de estabelecer a partir da epidemia uma codificação ética e moral diversa para a prática do sexo. A partir desta codificação, a camisinha passou a ser a “super-star” no processo, garantindo com a prática do sexo seguro a segurança da não-infecção, em quase 100% dos usuários.
A teoria do sexo seguro se originou em primeira mão dos grupos gays norte-americanos como medida preventiva do grupo contra a AIDS. Foi, seguidamente, indicada como o método preventivo, por excelência, contra a epidemia, pela Organização Mundial de Saúde – OMS, devendo ser adotado por todos os países. Apesar de não se considerarem os responsáveis pelo fenômeno, como quiseram fazer crer os cientistas da medicina, os homossexuais masculinos concordaram com a idéia de tomar precauções, visto que muitos gays estavam morrendo inesperadamente não somente nos EUA, o que demonstrava a gravidade do fato (Rotello, 1997, Altman, 1995). Assim, os gays masculinos logo fizeram uso dos preservativos para não se infectarem com o vírus, divulgando no seu meio social a urgência de mudança de hábito das práticas sexuais, como medida de prevenção para o sexo seguro. “Usando a camisinha não se pega AIDS” (Rotello, 1997). Este autor é do pensamento de que mesmo considerando a orientação de sexo seguro com o uso da camisinha como uma medida discriminatória dos grupos antigays, os homossexuais viram nisso uma saída para se protegerem e não pegar AIDS.
Para Rotello (1997), os que procuravam criar a teoria do sexo seguro, os "antigays" , quase que se apropriaram da Aids como simbolismo para responsabilizar os homossexuais masculinos (gays) pelo fenômeno. De acordo com ele, o primeiro conselho explícito sobre a prevenção da AIDS apareceu em 1982, na forma de panfletos e circulares, publicados por um grupo de médicos, gays e lésbicas de São Francisco. “Os Médicos da Bay Area por Direitos Humanos pelos cidadãos de Houston, pela Igualdade Humana e pela Crise na Saúde dos Gays de Nova Iorque”. (Rotello, 1997, p 120). Este material enfatizava que a redução de parceiros deveria ser uma estratégia adotada para evitar a infecção. A circular foi distribuída pela Crise na Saúde dos Gays. Segundo Rotello, “... quanto menos parceiros diferentes, menor é seu risco de pegar uma doença...” “Além da redução de parceiros, os gays eram encorajados a ‘reconhecer’ seus parceiros e a examinar um o corpo do outro antes de praticar sexo, procurando evidencias de lesões e gânglios inchados, pois se presumia que a infecção produzia sinais visíveis”. (Rotello, 1997, p 121)
Estas foram as primeiras medidas de colonização da prática sexual no contexto da AIDS. Seguidamente, a partir da necessidade de estabelecer medidas para tratamento e prevenção, surgiram as propagandas na TV, as campanhas para prevenção, a distribuição de panfletos e de preservativos pelos órgãos públicos de saúde. Divulgaram-se notas em jornais e revistas de circulação semanal e outros mais, advertindo quanto a esse risco.
A experiência da AIDS impôs uma redefinição na identidade de gênero em relação ao gerenciamento da identidade sexual. Fazia-se necessário conhecer, investigar, monitorar o outro com quem se estava identificando eroticamente, a fim de se manter ou não relações sexuais. Isso a partir de um diagnóstico de infecção revelando que o contágio se deu no sexo. Pensar em outras conquistas, em amores com paixão e erotismo, passou a ser uma experiência bastante dolorosa tanto para as pessoas que estavam soropositivos quanto para as que já estavam com Aids. Questões relativas ao desejo sexual pelo outro, a pensar eroticamente o outro, e fazer o sexo, passaram a serem questões do domínio público. O outro, o ser erotizado objeto das fantasias e do desejo sexual, passou a ser tratado como o representante do perigo da morte iminente, porque a “Aids Mata”, era o que diziam as notícias veiculadas pela mídia.
Assim, no plano da conquista da vida erótica, aquele que inspirava o amor e as fantasias eróticas, passou a ser apresentado como “estranho” contra quem tinha de se prevenir mantendo-se cuidadoso nos mínimos detalhes. De forma que, quando o assunto era transar, viver o erotismo, a palavra de ordem era: cuidado com o outro! O perigo está muito próximo de você, pode estar na sua cama. De acordo com Rotello (1997), isto gerou preconceito e discriminação. A AIDS desnudou a intimidade, tornou a sexualidade um problema de saúde pública, devendo a partir de o seu surgimento ser resolvido na esfera pública. Esse problema resultou no desalento das pessoas quanto as expectativas de vida amorosa, plena e feliz. Os portadores foram vendo surgir medidas de prevenção, que foram se configurando em atitudes de colonização da vida intima, com indicações para o modo de como transar, com quem, e de que modo transar.
Em face de tal colonização da vida pessoal, os portadores, em determinados estágios da condição de saúde – pela sua carga viral, ou seu CD4 muito baixo, e ainda pelo próprio cuidado com o outro (portador, ou não) –, começam a não querer dar prosseguimento ao exercício da sua sexualidade, o que se agrava muito mais quando a contaminação ocorre através do sexo. E, quando isso decorre de uma traição conjugal, a situação de desolação e negação, ou de desinteresse pelo sexo, é cada vez mais acentuada.
O desejo de ter uma vida sexual normal, intensa, com grandes momentos de prazer, de alegria perde o seu encanto e colorido, pois o medo de contaminar o outro, ou de se reinfectar é muito presente no imaginário do portador. Apesar de já se estar no final da segunda década de AIDS, o uso da camisinha ainda não faz parte do imaginário erótico coletivo. De forma que as mulheres sentem dificuldades em negociar com os seus parceiros o uso do preservativo, e os parceiros ainda não aceitam a possibilidade de ter que usá-lo, o que geralmente vem dificultando a vida sexual dos casais. Observa-se que as orientações que são dadas por médicos e agentes de saúde não alcançam o seu objetivo satisfatoriamente, visto que as mesmas são pensadas para o monitoramento das sexualidades alheias apenas com uma intenção: evitar a infecção e a reinfecção. Ao se propor o sexo seguro, a idéia que vem subjacente é a de que o mesmo tem de ser praticado com racionalidade, sem prerrogativas para as fantasias e o imaginário erótico que estimulam o desejo de fazer sexo.
A questão da colonização da sexualidade pode ser observada no quadro a seguir, através dos indicadores que tratam dos modos como as pessoas vêem suas vidas sexuais na condição de portadores do HIV/AIDS. Esses indicadores revelam os efeitos que essa nova condição causa nas vidas do homem e da mulher, no modo como respondem aos efeitos causados pela infecção, nas mudanças que eles observaram na sexualidade, se houve ou não continuidade em suas vidas sexuais:
Quadro 3
Efeitos do HIV/AIDS na Sexualidade dos Portadores
Portadores Indicador 1 - Como o homem e a mulher vêem a Sexualidade no HIV . Indicador 2- Efeitos do HIV na Sexualidade: homem e mulher.
Germano O homem reage diferente da mulher. Não teve nenhum problema.
Jamerson A mulher vê igual ao homem. Anulou a minha vida Sexual.
Clarice O homem aceita igual à mulher. A minha vida sexual esfriou; fiquei fria.
Bernardo Homens e mulheres vêem sob a mesma condição. Alterou muito minha vida Sexual.
Marcelino A mulher vê diferente do homem: ela é vítima. Alterou demais a minha vida sexual.
Giovanni É diferente: a mulher é vítima. Mudou demais a minha vida sexual.
Eugênia Vê diferente. A mulher fica se culpando. Alterou muito a minha vida sexual.
Yanê É a mesma coisa. É uma dificuldade só pra os dois. Muda o sexo: a gente tem que se prevenir.
Vanessa O homem vê diferente da mulher, ele é mais ativo. Mexeu demais com a minha vida sexual.
Alcides Não sei bem, mas acho que é diferente. Não teve nenhum problema para mim.
Olímpio Eu acredito que todos vêem do mesmo jeito. Tive que parar a minha vida sexual.
Kátia Eu acho que é a mesma coisa; os dois vêem do mesmo modo. Parei de fazer sexo para não contaminar os outros.
Fonte: Pesquisa Aids, Gênero, Exclusão- na redefinição da Identidades dos portadores, com base nos depoimentos dos entrevistados.
Neste quadro, vemos que os efeitos do HIV/AIDS na vida dos portadores causam reações comportamentais bastante desanimadoras na vida sexual. No indicador número um, as opiniões sobre os modos de homens e mulheres verem o sexo após a infecção, as opiniões se dividem proporcionalmente. De forma que uma metade dos entrevistados Jamerson, Clarice, Bernardo, Yanê, Olimpio, e Kátia é da opinião que o homem e mulher vêem o sexo de modo igual depois do HIV/Aids: A outra metade: Germano, Marcelino, Giovanni, Eugênia, Vanessa, e Alcides, é da opinião de que o homem e a mulher vêem de modo diferente. Entre estes últimos, chamam a nossa atenção os depoimentos de Eugênia, Marcelino, e Giovanni, pelo fato dos três justificarem a sua opinião sob a alegação de que a mulher é vítima.
Observando o segundo indicador, vemos que dez dos portadores entrevistados se queixaram dos efeitos que o vírus causou em suas vidas sexuais. Como já discutimos acima, a perda do contato com a sexualidade, com as fantasias eróticas, cria um sentimento de vazio e de inutilidade muito grande na vida dos portadores. Porém, esses efeitos não perduram para sempre. Superados os impactos iniciais ao recebimento do diagnóstico, quando os portadores já se encontram mais restabelecidos, o desejo de retomar as suas vivências sexuais reacende o que significa dizer que as pessoas estão retomando as suas vidas.
A consciência da sexualidade não deixa de existir porque as pessoas pegam AIDS. Por certo que todos passam por situações desgastantes em face de essa realidade, com muitas inquietações, com receios de que não voltarão mais a fazer o sexo como vemos no quadro acima. Porém, a partir da superação dos primeiros efeitos, como já citamos anteriormente, o desejo volta às fantasias eróticas também. As pessoas procuram dar continuidade à sexualidade “sadia”, nos limites do que esse desejo possa significar para alguém que conhece os riscos da infecção.
Dissertação do Meu Mestrado - Abstratct
QUANDO NEGATIVO É MELHOR QUE POSITHIVO -
um estudo sociológico
das experiências identitárias de pessoas
vivendo com HIV/AIDS em Recife
ABSTRACT
The main objective of the present work is to investigate the identity redefinition of a group of people infected with the Aids virus. The question which originated it was: what’s the meaning of life for somebody that finds himself infected with the Aids virus? The hypothesis which guided the research process were the following: the condition of the person infected with the virus triggers a process of identity redefinition; the gender condition influences in the identity redefinition; the infected person suffers stigma and exclusion in the doctor-patient relation.
The methodological resource in the research was the qualitative method. The gathering of data was done in two phases. In the first one, we consulted resource material form the Ministry of Health; periodic publications and specialized bibliographies about the subject. In the second, we used the techquine of recorded interviews as a technical recourse of an open-questions questionnaire. The research was done with twelve patients in two non-governmental organizations (NGO) in Recife.
The conclusions of the study showed that the identities of people infected with the Aids virus are defined in a symbolic and imaginary dimension because of an ideal of the self, through deals and bargains, among those infected with the virus. And that the usage of the cocktail (combination of medicaments), the psychological treatment, the hope of a vaccine which will bring the cure, symbolize survival strategies for a longer lifetime, keeping imminent death away.
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Miriam Fialho da Silva.
um estudo sociológico
das experiências identitárias de pessoas
vivendo com HIV/AIDS em Recife
ABSTRACT
The main objective of the present work is to investigate the identity redefinition of a group of people infected with the Aids virus. The question which originated it was: what’s the meaning of life for somebody that finds himself infected with the Aids virus? The hypothesis which guided the research process were the following: the condition of the person infected with the virus triggers a process of identity redefinition; the gender condition influences in the identity redefinition; the infected person suffers stigma and exclusion in the doctor-patient relation.
The methodological resource in the research was the qualitative method. The gathering of data was done in two phases. In the first one, we consulted resource material form the Ministry of Health; periodic publications and specialized bibliographies about the subject. In the second, we used the techquine of recorded interviews as a technical recourse of an open-questions questionnaire. The research was done with twelve patients in two non-governmental organizations (NGO) in Recife.
The conclusions of the study showed that the identities of people infected with the Aids virus are defined in a symbolic and imaginary dimension because of an ideal of the self, through deals and bargains, among those infected with the virus. And that the usage of the cocktail (combination of medicaments), the psychological treatment, the hope of a vaccine which will bring the cure, symbolize survival strategies for a longer lifetime, keeping imminent death away.
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Miriam Fialho da Silva.
Dissertação do Meu Mestrado
QUANDO NEGATIVO É MELHOR QUE POSITHIVO -
um estudo sociológico das Experiências Identitárias
de Pessoas Vivendo com HIV/AIDS em Recife
INTRODUÇÃO
A AIDS na contemporaneidade se configura em um grande flagrante na sociedade. Seu advento traz embutidas questões de teor diverso, denunciadoras do modus vivendis das populações, tais como: formas de organização social; construção, compreensão e representações da realidade social empírica; redimensionamento das práticas de vida, a partir das leituras e apropriações dos textos com os quais vão se deparando na sua cotidianidade e no reordenamento das vivências.
Surgindo numa realidade histórica em que as grandes epidemias são dadas como erradicadas, pelo menos nos países desenvolvidos, a AIDS pôs em estado de inteira perplexidade toda a sociedade global, desdobrada nos seus diversos segmentos. A exemplo disso, poderemos citar algumas instituições sociais como o Estado, a ciência-médica, a família, a religião, o trabalho, e outras.
No trato dessa temática da AIDS se faz necessário, portanto, apreender as particularidades inerentes ao fenômeno que o tornam diferente de outros já ocorridos, como por exemplo, as grandes epidemias que assolaram o mundo: Peste Negra, Gripe Espanhola, Tuberculose, etc. Essas particularidades, que são bastante significativas, estão relacionadas às práticas de vida dos indivíduos no campo social e pessoal, identificadas como anormais, em alguns casos, por estarem dissociadas dos padrões éticos da moral social convencional não reconhecidos como componentes do padrão “normal” de vida social. Muitas delas eram vivenciadas numa atitude que se pode cognominar de clandestinidade, e que só começaram a fluir a partir da AIDS.
O tema da nossa pesquisa: “AIDS, gênero, exclusão: na redefinição da identidade dos indivíduos portadores”, nasce do nosso envolvimento com a problemática do fenômeno AIDS, num período em que estive em contato com outras pessoas que atuavam junto a essa questão, bem como com pessoas portadoras e seus familiares. Através desses contatos, de leituras de artigos em periódicos: jornais e revistas - alguns citados em nosso referencial bibliográfico, livros e filmes que assisti, me foi possível construir idéias, formalizando, assim, este tema.
A AIDS, desde a sua notificação no Brasil, no início da década de 1980, despertou a atenção de muitas pessoas. Pesquisadores, representações de grupos, iniciaram as lutas, para fazer frente à epidemia da AIDS.
Em Face De todo o mistério que envolveu o surgimento da AIDS, foram-se desenvolvendo paralelo a ele, alguns estudos e pesquisas, e também publicações, e campanhas esclarecedoras à população, na tentativa de se deter tal fenômeno.
No palco da produção do conhecimento, foram surgindo intelectuais, profissionais da saúde, representações governamentais e não governamentais, levantaram suas vozes para fazer ecoar o seu grito de alerta a todo o mundo.
Sendo a AIDS o fenômeno que se materializou na vida orgânica dos indivíduos, pondo-os no confronto direto com a sua finitude, com a idéia da morte iminente, e ainda, com o enfrentamento dos resultados de suas práticas de vida, na discussão do nosso tema, nos deparamos com categorias analíticas, implícitas a sua vida pessoal, social e cultural. Essas categorias são imbricadas de tal forma, que é quase impossível discutir AIDS, sem o confronto imediato com elas. Isto porque, tratar da questão do gênero significar tratar da vida afetiva das pessoas, dos papéis sociais por elas exercidas enquanto representantes da categoria masculina e feminina, sem ignorarmos aqui que, o trato da questão gênero não se encerra apenas nesses papéis. Gênero também se define na questão cultural das relações humanas, e no simbolismo do mundo dos significantes e significados. Tomando como referência o trabalho de Socorro Duarte (1996: 26), “A AIDS precisa ser vista no cotidiano dos indivíduos sob a ótica das questões de gênero, de classe social, de raça e de etnia que significam respectivamente os espaços ocupados por eles em sua realidade cotidiana”.
Além de estarmos plenamente de acordo com esta autora, vamos ainda mais adiante, para fortalecer o seu pensamento, dizendo que: se não tratamos do fenômeno por estas perspectivas, por quais trataríamos, visto que é na vida das pessoas, que estão por sua vez inseridos nos guetos sócio-culturais, que a AIDS se manifesta, se instala e os coloca em estado de plena vulnerabilidade em face de sociedade?
No que concerne ao subtítulo do nosso tema: “na redefinição da identidade dos portadores”, argumentamos que, primeiro: ao tratarmos da Aids tratamos da vida biopsíquica e social dos indivíduos, que significa, sua mundivisão, suas opções de vida afetiva e sexual, suas incertezas quanto ao futuro, sua escala de valores, e o reconhecimento de seu status, que segundo alguns relatos de profissionais que atendem pessoas portadoras e delas próprias, são tudo posto em questão (et. Camargo, 1994). Os indivíduos, após o diagnóstico médico da sua infecção por HIV - AIDS são postas num estado de muita incerteza, o que as leva a buscarem o sentido, que parece perdido, para a existência, definindo prioridades nos diversos campos de suas vidas, voltando a se inserirem nos campos sociais, assumindo novas posturas de vida.
A priori, esta é a explicação que consideramos necessária dar, situando essa questão da AIDS e do nosso tema de pesquisa. Na construção do problema e do referencial teórico retomaremos essa discussão, procurando definir melhor como essas questões poderão ser discutidas nas perspectivas de teóricos que tratam da análise conceitual dessas categorias.
Neste momento iremos notificar algumas produções relevantes sobre a AIDS aqui no Brasil, que têm contribuído significativamente no combate a essa epidemia. Os estudos sobre o HIV-AIDS tiveram seu início oficial aqui no Brasil com a atuação do Ministério da Saúde que criou um grupo de trabalho para planejamento e execução de tarefas para tratamento e prevenção da epidemia da AIDS, em 1988; o chamado: “Programa Nacional de DST/AIDS”, ou “Programa Nacional de Doenças Sexualmente Transmissíveis e AIDS”. Esse programa constou de duas partes: a primeira faz uma análise do território nacional geográfica e socialmente, analisando a situação da saúde no Brasil, a organização do sistema de atenção a saúde, o financiamento do setor saúde, a infecção pelo HIV e explicando o Programa Nacional de Controle e Prevenção, seus objetivos e as etapas que deveria ser desenvolvidos. Esse programa foi tomado como referência básica por todos os secretários de saúde estaduais e municipais, para elaboração dos seus programas locais.
Atualmente possuímos aqui no nosso Estado oito locais de referência para atendimento das pessoas portadoras, entre hospitais e centro de assistência social, e serviço de informação sobre o HIV-AIDS.
Na produção do conhecimento, contamos com a sua expansão em várias instâncias sociais: as ONG’s que atuam individualmente e também em parceria com os programas dos governos locais.
No que tange as ONG’s, em caráter nacional temos: a ABIA (associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS). Organizada em 1982, sob a presidência de Herbert de Souza. Contando com a colaboração de uma equipe interdisciplinar a ABIA tem como finalidade promover a educação e a informação para o controle e a prevenção da epidemia do HIV-Aids. Temos ainda o grupo Pela Vida (Pela Valorização, Integração e Dignidade do Doente de AIDS). Esta ONG se constitui basicamente por pessoas portadoras, seus familiares e amigos. Este grupo atua com franquia de seu slogan em vários estados do Brasil, além do Rio de Janeiro, onde se originou, está em São Paulo, Paraná, Espírito Santo, Vitória/ES, Goiás, Cascavel - Paraná. Atua com prevenção e intervenção jurídica. Dentre essas duas ONG’s, temos muitas outras que trabalham incansavelmente, que no momento nos é impossível citar as referências.
Na cidade do Recife, podemos enumerar algumas ONG’s que atuam expressivamente, são elas: a ASAS (Associação de Ação Solidária) criada em 1992, que atua na intervenção, através de uma equipe multiprofissional, e atende também aos familiares; o FORUM AIDS e a GESTOS, dentre outras.
Na produção acadêmica nacional, dentre outros, temos o IMS - UERJ (Instituto de Medicina Social do Rio de Janeiro), a FUMCAMP (Fundação de Desenvolvimento da Universidade de Campinas - São Paulo), o Hospital Emílio Ribas que é considerado como o maior hospital de referência do país a tratar as doenças patológicas da AIDS.
O nível local tem o NEPA do HC-UFPE (Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre AIDS), temos o Hospital Correa Picanço e o Hospital Oswaldo Cruz - UPE.
Contamos ainda com a produção acadêmica nos programas de pós-graduação da UPE e UFPE. Destacamos dentre tantas outras produções, os trabalhos de Socorro Duarte sobre “AIDS e Gênero na união conjugal”- Mestrado de Serviço Social (1996) e; de João Alberto sobre “Sexo/Pecado/Punição. A AIDS entre nós”, Mestrado de Antropologia.
Considerando, pois, já toda a produção sobre a AIDS, a exemplo do citado aqui, e a toda a outra do qual ainda não tomamos conhecimento, pretendemos também desenvolver nossa pesquisa sobre o assunto, na tentativa de dar nossa contribuição no trato desse fenômeno, procurando trazer à discussão aspectos ainda subjacentes, ou até mesmo reconhecidos, porém não aprofundador.
Desse modo, o que interessa pesquisar e que pensamos ser inovador na questão AIDS, não está definitivamente nas categorias proponentes do tema, e sim no estudo sociológico que intentaremos produzir sobre o fenômeno, buscando inserir a abordagem sociológica como contribuição interpretativa e reveladora, na análise dessa epidemia, já definida como um fato social global. Para uma melhor compreensão dessa questão global, veja Parker, 1994.
O que justifica a nossa pesquisa, pois, não é a pretensão de produzir mais um trabalho sobre a AIDS, para ser lido como algo inovador, elaborado em função da pungência do novo que essa epidemia desvela, mas sim tratar de um assunto que por dizer respeito a todos, também diz respeito à sociologia, e sem receio de estar entrando numa seara alheia.
Advogamos ainda, que, até pela razão de ser a ciência que estuda os comportamentos sociais dos indivíduos é de sua inteira competência tratar dessa questão, sendo este um dos fatores que também justifica nosso estudo.
Sendo assim, nossa pesquisa se justifica na perspectiva de que, em função da análise sociológica da condição de vida em que são postos os indivíduos pela sua infecção por HIV-Aids, sejam discutidas mudanças nas relações entre esses atores e os outros, não infectados, na intenção de propor a superação das diferenças, postas no trato dessas pessoas.
Questões como: a exclusão social, a perda de sentido da vida, os papéis sociais, a condição de gênero, a nova identidade cultural, social e pessoal, deverão ser tomadas como propostas para explicar os comportamentos dessas pessoas, e propor formas de vida diferentes, livres de preconceito moral, social e sexual vigentes. Até porque, cremos que pode ser a partir dessas mudanças, que a AIDS possa ser liberta de todo o estigma que lhe impuseram, e começar a ser vista e tratada sob outros olhares, dando outros resultados.
Faz-se urgente, pois, um somatório de esforços para alcançar essa nova realidade: a cura, o descobrimento de uma vacina que instaure nos portadores a alegria e a esperança pela vida, por um lado, e, por outro, um amplo investimento em programas de prevenção, afetiva e eficaz, que contribuam para o retorno do pensar o futuro sob outras perspectivas.
As particularidades das vivências das pessoas a que estamos nos referindo, materializam-se na cotidianidade de forma contundente e são cristalizadas pelos tipos de vida e pelos modos como elas se inscrevem nos campos sociais: grupos de pertença, lugares que freqüentam hábitos de vida diferenciados, e outros, aspectos que no momento não aprofundaremos, pois, são questões que serão mais bem identificadas e desenvolvidas posteriormente. Numa primeira instância, nossa pretensão é unicamente situá-las no cenário da temática em discussão: a redefinição da identidade individual e coletiva das pessoas vivendo com HIV-AIDS.
O PROBLEMA
A AIDS nos proporciona um momento histórico de profundas reflexões. Surgindo numa realidade social hedônica, em que o homem moderno aumentou a sua longevidade, pondo a idéia da morte cada vez mais distante de si, a AIDS aparece se inscrevendo no cenário social como um fato real e concernente a todos.
Segundo Carmargo (1994), a AIDS é a epidemia que, no final do século XX, tem representações semelhantes à tuberculose, ao câncer, e traz acrescida as categorias de ser sexualmente transmissível, de uma ação lenta do agente etiológico e da existência de um portador sadio.
Segundo a autora acima citada, quando as grandes epidemias, a exemplo da febre amarela, da varíola, etc., foram controladas, ou foram fracamente endêmicas, sempre surgiram outras, como a gripe espanhola que afetou continentes inteiros -1918 a 1919-, trazendo grande mortalidade para todo o globo. A tuberculose foi outra dessas epidemias de caráter infeccioso. Considerada a doença do século XIX e do início do século XX, e que só foi identificada após dizimar muitas vidas e após longo trabalho de investigação. Pela crueldade de seus danos ela foi tida como uma peste da urbanização, da industrialização e das precárias condições de vida do proletariado (Idem).
No limiar do final do século XX, surge a AIDS como a exterminadora do presente. Traz consigo o pânico da morte, o confronto com os limites humanos, com a redefinição do tempo da vida, ao mesmo tempo em que possibilita uma visão mais abrangente da mesma.
A epidemia da AIDS é formada por um conjunto de fatores que a definem e explicam de modo bastante complexo, o que, até hoje, ainda não é compreendido por um grande contingente da população. Isto pode ser justificado pelo modo como foi difícil para a própria ciência médica diagnosticar a etiologia da virose que se pressupunha, à época das primeiras investigações, serem causadoras daqueles óbitos.
As primeiras notícias sobre a AIDS chegam dos Estados Unidos em 1981, através de um órgão governamental americano: Center for Disease Control. Cidades como a Califórnia e Nova Yorque atestavam mortes de jovens e adultos masculinos que tinham em comum a homossexualidade e que ocorriam de forma inusitada, combinando raros tipos de cânceres com pneumonias comuns. Esses casos foram descritos como estados de imunodeficiência. Ou seja, uma diminuição dos recursos orgânicos tradicionalmente requisitados para manter o corpo “imune” às infecções (CAMARGO JR., 1994).
A epidemia da AIDS é, portanto, uma doença nova, tendo sido diagnosticada no princípio dos anos 80, pelos franceses e americanos. O termo “AIDS” é uma sigla originada do nome inglês: “Acquired Imune Deficiency Síndrome”, que se traduz por: “Síndrome da Imunodeficiência Adquirida” (em português se chama SIDA). O termo síndrome significa um conjunto de doenças que se manifesta em várias formas de mal-estar que aparecem juntas. No caso da AIDS, esse conjunto de doenças e sintomas pode ir de diarréias e vômitos, a gânglios inchados, sarcoma de kaposi (que é um tipo de câncer visível em doenças epidérmicas - manchas vermelhas-), e outras patologias como, doenças respiratórias, tuberculose, herpes, toxoplasmose, perda de peso acentuada e outros. Isto é, são sintomas e doenças conhecidas que, isoladamente, não seriam tão problemáticas, nem letais, como no contexto da AIDS (Informativo ABIA, 1994).
Nesse parecer, a sigla AIDS ou SIDA, se constitui num conjunto de termos, onde cada um deles possui o seu conceito próprio dentro da ciência biológica. São eles: Síndrome, Imunodeficiência e Adquirida.
Sendo assim, passaremos a explicar o significado de cada um desses termos, no intento de facilitar a compreensão da síndrome AIDS. Até porque, a não compreensão desses termos, se configura na grande dificuldade das pessoas apreenderem a gravidade da infecção pela AIDS.
O termo Imunodeficiência configura-se na falha das defesas do organismo. Uma doença que seria simples e até inofensiva numa pessoa saudável, no caso da AIDS assume um caráter complexo e de riscos significativos.
O conjunto celular do corpo é definido pelos cientistas como o “sistema imunitário”. Esse sistema é uma massa de tecidos e células espalhadas por todo o corpo. A organização desse conjunto de células funciona de modo a proteger o corpo de infecções. A AIDS é, pois, a doença do sistema imunitário, assim como a hepatite é a doença do fígado, a gastrite é a doença do estômago, etc. Portanto, com o sistema imunitário comprometido -em imunodeficiência- as infecções podem se tornar muito graves, mais do que realmente são. Essas infecções que se aproveitam das falhas do sistema imunitário são chamadas de infecções oportunistas (Idem).
O termo adquirida diz respeito ao aparecimento dos primeiros casos de AIDS. Segundo os patologistas, as doenças do sistema imunitário são raras. Algumas pessoas nascem com elas, outras as têm por razões desconhecidas, ou ainda, porque fizeram transplante, etc. Todavia, uma doença imunitária em caráter de epidemia, atingindo comunidades inteiras é algo inédito! A imunodeficiência é, em algum momento, “adquirida” pela pessoa.
Desse modo, a AIDS é uma doença imunológica, resultante de uma infecção por um vírus que é transmissível em circunstâncias determinadas de troca íntima de fluidos do corpo. Esta troca pode se dá através do ato sexual, da transfusão de sangue, da gestação, do nascimento e da amamentação (Idem).
O HIV é um retrovírus, o que significa que a sua forma de vida é a mais simples, arcaica e bruta. Tem curta duração de vida, morrendo rapidamente se forem mantidos por quinze minutos, mais ou menos, numa temperatura de 50ograus centígrados. Morre também ao contato de alguns minutos com vapores de formol, hipocloreto de sódio, ou outros (Idem). HIV significa Human Imunedeficiency Virus (Vírus da Imunodeficiência Humana). Trata-se de um vírus que possui características muito particulares e por isso pode passar, e, passa despercebida, por muito tempo no corpo dos seres humanos, sem se manifestar, ou então o faz num período de nove meses até seis anos. Infecta de modo lento, não apresentando sintomas de contágio. A transmissão ocorre através do contato íntimo de pessoas portadoras por via de relações sexuais, ou outros contatos dos líquidos orgânicos.
O sistema imune é o alvo do assalto do HIV. O vírus é um parasita que invade e se apropria, de preferência, da máquina genética de uma célula crítica do sistema de defesa humano: a chamada T auxiliadora, que tem como função incentivar as células que fazem os anticorpos e ajudam a controlar as infecções por fungos e bactérias. Para poder entrar na T auxiliar, o vírus HIV utiliza proteínas que ficam na superfície dessa célula, em particular a chamada CD4 (LEPARGNEUR, 1987). Em vez de transformar as células e multiplicá-las, como no câncer, este vírus destrói o linfócito T-4, que é a chave do sistema imunológico.
Portanto, dentro dessa discussão da Síndrome da Imunodeficiência Adquirida se distinguem dois estágios: um de soropositividade e, outro, de doença da AIDS. Esses são estágios diferenciados em que alguém pode ser um soro positivo assintomático por muito tempo, ou então, alguém já está com a manifestação dos sintomas da doença, é o que se considera como o estado avançado da infecção por HIV-AIDS. Essa é uma fase bem mais delicada na vida das pessoas, visto que elas se confrontam com a sua própria existência, a sua vida íntima e seus referenciais sociais na coletividade.
Diante do que está posto acerca dessa epidemia, fica notório que a AIDS se diferencia de outras já ocorridas no mundo por sua patogênesis: a AIDS é uma doença do sistema imunológico. Ela é adquirida pelo vírus HIV que ataca esse sistema celular e o enfraquece, levando as pessoas por ela alcançadas à morte. Esta é a constatação a qual tiveram, e ainda terão que chegar, as populações do mundo.
Frente ao exposto, um questionamento significativo se impõe, pois, mesmo sendo mais uma epidemia, a AIDS se diferencia muito das outras. Sendo assim, o que é que torna a AIDS tão diferente, o que há de subjacente a essa condição de epidemia que a torna tão apavorante, porque se tem tanto temor a AIDS?
De princípio, podemos afirmar que a AIDS se configura num fenômeno marcado por estigmas, o que pode ser facilmente verificado fazendo-se um resgate do período de seu surgimento. Caminho que pode apontar as respostas para essas e muitas outras questões.
Alguns estudiosos do assunto, pelo menos aqui no Brasil, tais como médicos especialistas em patologias diferentes como, os psiquiatras, infectologistas, e outros profissionais pesquisadores que também atuam junto a vida emocional e social das pessoas como, as assistentes sociais, psicólogos, antropólogos, sociólogos, e demais, são unânimes em constatar que algumas das razões que explicam o estigma dessa epidemia estão calcadas em alguns conceitos utilizados para divulgação da AIDS. Esses conceitos dizem respeito ao modo como ela foi notificada, através da mídia, para o globo: “uma peste dos culpados” (PARKER, 1994). A AIDS era uma doença de “grupos de risco”. Esses grupos se dividiam em “vítimas” (hemofílicos) e “promíscuos” (homossexuais, prostitutas, viciados em drogas). Durante mais de dez anos, as idéias sobre esse fenômeno foram as mais distorcidas possíveis. Falava-se muito mais na pessoa que estava doente, do que na própria doença. Essas pessoas chamavam mais a atenção do que a doença (PAIVA, 1992).
Outra explicação pode ser dada considerando que a constatação da infecção pelo HIV-Aids coloca as pessoas numa situação de completa vulnerabilidade face aos desvelamentos que essa condição provoca. E ainda, porque essa condição de portador do HIV-Aids implica na inserção dessas pessoas nos grupos de indivíduos definitivamente marcados no seu meio social.
A condição de marcado pelo HIV-Aids é a condição de pessoa estigmatizada. Aqui se faz necessário uma rápida explicação sobre esse fenômeno estigmatizado. Na perspectiva do teórico Ervening Goffman (1988), que no seu trabalho discute a condição social em que são postas as pessoas quando guardam em seu corpo físico, ou moral, sinais ou marcas, que os distinguem dos demais e por conta disso se encontra numa condição de inaptas para o convívio em sociedade. Segundo o autor, o estigma é, pois, um tipo especial de relação entre o atributo e o estereótipo. Ou seja, o estigmatizado é o sujeito inserido no convívio da sociedade, com seu conjunto de normas e valores, mas que se destaca porque possui uma marca física, ou patologia social, sem desconsiderar a estrutura social e moral da sociedade. Em função dessas suas condições, o estigmatizado necessitará assumir posturas de vida que possibilitem continuar inserido nos contextos sociais.
Sendo a AIDS o fenômeno social que pôs as claras à intimidade dos indivíduos, nas suas práticas sexuais, culturais, afetivas, bem como a própria sociedade nas suas representações institucionais: por exemplo, a ciência médica, das políticas de saúde, do uso do sangue transferido, ela pode ser lida como a epidemia que possibilitou os estigmas à vida dos indivíduos.
Portanto, no que concerne ao nosso tema de pesquisa, onde nos propomos investigar a redefinição dos portadores do HIV-Aids, tomaremos a condição de portador como nossa variável independente, bem como fixaremos nosso olhar nos modos como estão inseridos esses indivíduos estigmatizados, em função da sua representação de gênero e da interação nos campos institucionais e culturais, e também na sua vida emocional.
Sendo assim, na perspectiva da problemática AIDS exposta até aqui, que aponta para a necessidade de um repensar da vivência e a necessidade de uma reconstrução da vida após um diagnóstico médico da infecção a pergunta que se impõe é a seguinte: Como os portadores do HIV-Aids redefinem as suas instâncias identitárias? Considerando, também, que a condição de portador é a condição de pessoas estigmatizadas social, cultural e moralmente, perguntamos como a condição de gênero influi na construção de novas identidades; e como os indivíduos se redefinem em função da exclusão social que sofrem?
Para tentar responder a tal questionamento levantamos as seguintes pressuposições, que tomamos como hipótese central e sub-hipóteses.
Hipótese Central:
A condição de portador do HIV-Aids desencadeia um processo de redefinição da identidade tanto na perspectiva institucional-cultural, como emocional.
Sub hipóteses:
1) A nova identidade de portador é em parte determinada pela condição de gênero;
2) O indivíduo é excluído social e culturalmente, em função da sua condição de portador.
Nesse sentido, nosso objetivo com a realização deste estudo se materializa em duas intenções: a primeira, que identificamos como o objetivo geral, é analisar a redefinição da identidade dos indivíduos portadores do HIV-AIDS. A segunda, que se constitui em nossos objetivos específicos, é:
a) identificar as novas identidades construídas pelos portadores, e a sua significação institucional-cultural na condição de gênero.
b) analisar a rejeição e a exclusão social sob que os portadores são postos.
c) contribuir, com a análise sociológica do fenômeno AIDS, para a explicação dos contextos da realidade social em que são postos os indivíduos na sua condição de portador.
Somos do pensamento, como outros autores (Camargo Jr., 1994) que tomou o fenômeno da Síndrome da AIDS, reconhecer nele construções metodológicas categorizavam a partir do enfoque sociológico é o grande desafio a que nos estamos propondo, ao tempo que não negamos a sua característica de doença muito grave, que demanda um trato terapêutico intensivo, como até poderiam pensar algumas pessoas, e sim, abre a expectativa para a discussão dessa temática no âmbito novo da ciência, fato que poderá se constituir numa contribuição significativa para o vislumbramento das soluções eficazes para o problema.
REFERENCIAL TEÓRICO
No trato do tema da nossa pesquisa, onde nos propomos a investigar as representações sociais e imaginárias das pessoas portadoras do HIV-AIDS, que pressupomos se expressam a partir da condição de pessoa doente ou portadora, quando do diagnóstico médico, encontramos os indivíduos no confronto direto com a necessidade de redefinição de sua identidade, tanto no que tange a sua individualidade, quanto a sua coletividade, seus grupos de pertença.
As representações sociais e imaginárias já construídas, pressupomos, passam por uma desconstrução e uma nova construção. Se eles já tinham todo o seu conjunto discursivo, interpretativo de uma dada realidade social e do seu papel de indivíduos, pressupõe-se que, após essa nova condição de vida, eles buscam novas interpretações, criam outros símbolos e outras imagens, o que nos leva a crer que seu campo psicossocial e a sua inserção no seu contexto institucional, passa por mudanças profundas. O mundo de significados e significantes muda.
Dar um novo sentido a vida é a necessidade com a qual todos se deparam. Sentimentos de ordens diversas emergem, os laços sociais são estremecidos, os laços afetivos se quebram, ou se fortalecem. A crise de solidão é intensa, e como conseqüência nasce a insegurança quanto ao futuro. É justamente a partir desse estágio que nasce a necessidade de uma redefinição das instâncias identitárias. No plano individual e no plano da coletividade nova representações sociais e imaginárias nasceriam.
Portanto, em nosso estudo sobre representação social e imaginária e AIDS, fixaremos o nosso olhar com mais intensidade na tentativa de identificar quais são as representações sociais da AIDS construídas pelas pessoas portadoras, destacando o modo como o fazem, em função das experiências já vivenciadas, do diagnóstico-médico da sua nova condição de vida: pessoa portadora ou doente de AIDS.
Apesar de existir muitas outras formas para abordar esse tema no que diz respeito às formações sociais, as características pessoais, aos tipos de postura na opção de vida e muitas outras, optamos por investigar as características psicossociais.
Certamente não há nada subjacente a essa escolha, a não ser o interesse premente de aprofundar melhor o estudo quanto a essa nova pandemia. E, ainda, porque entendemos que o trato desse tema é algo bastante delicado, e que somente indo diretamente à população portadora é que obteremos os dados com segurança quanto a sua veracidade.
Somos do pensamento, como tantos outros autores (Schuch, 1996), de que abordar este tema torna-se relevante por muitas razões e, muito especialmente, porque essa síndrome, que vem atingindo um número crescente de pessoas nos seus modos diversos de se perceberem dentro dessa nova realidade, está ligada com novas formas das pessoas se olharem, com o trato do seu aparelho psíquico, e com a redefinição de suas instâncias identitárias na vida individual e coletiva, o que acreditamos trará uma grande contribuição para a compreensão da realidade social a partir de uma nova ótica.
Lidar com as questões bio-psíquicas dos indivíduos demanda sempre todo um trato diferenciado, e quando diz respeito às pessoas afetadas por uma doença como a AIDS, esse cuidado deverá ser redobrado. Isto porque, desde o seu aparecimento, a AIDS preocupou as pessoas em função de ser transmitida a partir de relações interpessoais e de que suas várias formas de diagnosticar o contágio trazem à tona questões da intimidade, o que deixa os seres humanos em situações conflitantes.
A AIDS se inscreve num período da vida social em que a intimidade passa por grandes transformações. A sua caracterização inicial de doença infecto-contagiosa, incurável, mortal, vinculada em primeira instância a homossexualidade, fez o seu aporte em muitos estigmas: pessoas que se decidiram por viver a vida e a sua sexualidade de modo alternativo, seriam castigadas com a morte por AIDS.
Desse modo, o peso social da AIDS é muito grande. Ela se afigura num fenômeno que se materializou no corpo das pessoas, e é esse um dos fatores que a diferencia das outras epidemias. Segundo Rouet (1996:16), “a SIDA, mais do que qualquer outra doença, tornou-se um fenômeno social muito importante; ela transtorna a escola, a empresa, a justiça, a igreja”. Fazendo um aporte na escrita do autor, acrescentamos que ela, também, flagrou o próprio portador na sua instância identitária, nos seus grupos de pertença, tais como, a família, a religião e o trabalho.
“Estar doente é ter passado por diversas etapas, é ser levado a passar por outras. Em primeiro lugar houve o anúncio da contaminação com o prognóstico, inevitável no atual estado de conhecimentos, de morte num prazo mais ou menos longo. Depois vem a fase de soropositividade sem sintomas, sem sinais físicos de doença, quando a pessoa acometida vive na expectativa ou na angústia de reorganizar seu modo de vida, durante alguns meses ou anos” (idem, ibdem).
Outro fenômeno é o de que ela põe as claras as práticas de vida, os modos como o imaginário social é construído, as expectativas quanto ao futuro, o medo da doença, da morte iminente, a certeza da finitude.
A condição de portador do HIV-AIDS parece ser a condição sine qua non para que busque outros modos para viver sua vida, redefinindo as relações com o tempo, reconstruindo as relações institucionais e afetivas, cotidianidade, as posturas em face de sua condição de gênero, a sua vida pessoal e profissional, ao seu status quo, e as questões ontológicas.
Na discussão desse assunto podemos tomar os trabalhos de Giddens (1992), que faz uma análise minuciosa e brilhante da sociedade moderna e das novas formas de expressão das relações afetivas. Questiona como se tem manifestado a sexualidade e que relações guardam com as mudanças gerais que têm afetado a vida pessoal dos indivíduos. Discute o papel da sexualidade, que chama de “sexualidade plástica”. Segundo ele, “a sexualidade plástica é a sexualidade descentralizada, liberta das necessidades de reprodução”. “A sexualidade plástica pode ser caracterizada como um traço da personalidade e, desse modo, está intrinsecamente vinculado ao eu” (GIDDENS, 1992:10).
As mudanças na intimidade que são marcantes e profundas passam a ser os indicadores para as novas formas de vida. Giddens diz que a história emocional das sociedades modernas é secreta, porém ela está prestes a ser desvelada completamente. Ele diz que “é uma história de buscas sexuais dos homens, mantidos separados de suas identidades públicas” (Idem: 11). Esse argumento do autor é bastante pertinente, e se funda exatamente no que estamos observando na contemporaneidade: o gênero masculino e feminino busca novas formas de negociações dos vínculos pessoais, em todos os aspectos da sua vida, partindo para o que o autor chama de “democratização do domínio interpessoal”, de modo que haja uma compatibilidade da vida nesse campo e no campo da esfera pública. A transformação da intimidade, ao que nos parece, vem forçando os campos sociais nas suas instituições de estruturas engessadas, no sentido de ganhar outras expressões, e as pessoas a buscarem uma redefinição de sua identidade. Havia uma intimidade velada, escondida, sufocada, desrespeitada. Com as mudanças sociais de caráter diversos na esfera pública, na economia e no trabalho, com a secularização da própria religião, a intimidade se ergue buscando que se admita também a sua transformação.
Nessa perspectiva, fluem com toda força questões latentes, subjacentes nos convívios interpessoais. As mulheres não admitem mais a dominação sexual masculina, os homens não conseguem digerir as novas opções de vida das mulheres, e outras formas alternativas de vida, que já existiam, são postas as claras. Dentro desse panorama, inscrevem-se os novos grupos sociais emergentes. São grupos de pessoas que têm um comportamento “desviante”, e que viviam no silêncio dos contextos sociais. Todavia, com a intimidade posta em evidência, mostrando que ela está sendo transformada, abre-se a possibilidade desses grupos se expressarem. Nesse parecer, inscrevem-se os homossexuais, um grupo que aparece com muita expressão organizativa, mostrando que a sexualidade é uma esfera privada, que o seu domínio é, portanto, do campo individual de cada ser humano, por isso é íntimo, é privado. Giddens ao abordar a discussão desse grupo diz que:
“as comunidades culturais gays que surgiram nas cidades americanas, assim como em muitas áreas urbanas da Europa, proporcionaram uma nova face pública para a homossexualidade”. “Em um nível mais pessoal, no entanto, o termo gay também trouxe com ele uma referência cada vez mais difundida à sexualidade como uma qualidade ou propriedade do eu” (Idem:24)
.
Sendo assim, na atualidade a sexualidade tem sido desnuda, revelada, sugerindo o desenvolvimento de estilos alternativos para sua expressão.
Tratar da discussão da sexualidade significa tratar dos modos como os seres humanos se percebem, se definem se identificam. Giddens ancora sua discussão da transformação da intimidade nos trabalhos de Foucault.
A análise que esse autor faz da sexualidade é uma análise histórica, partindo do século XVIII ao XX, onde ele pressupõe que se inicia a discussão aberta da sexualidade-, em que ele situa o surgimento do fenômeno da sexualidade como a expressão do poder disciplinar. Na sua discussão da sexualidade Foucault produziu um trabalho em que chama a atenção para o que ele denomina de “a hipótese repressiva” 2•, que aponta para o fato de que as instituições modernas, segundo ele, levaram as pessoas a pagarem preços pelos benefícios recebidos por parte dessas sociedades. Na análise foucaultiana da “hipótese repressiva” , o “poder disciplinar” emerge como o mecanismo que coage os indivíduos a reprimirem a sua sexualidade. Segundo Giddens, esse poder produzia supostamente “corpos dóceis”, controlados e regulados em suas atividades, em vez de espontaneamente capazes de atuar sobre os impulsos do desejo. Nesse sentido, o poder se expressa como um mecanismo de força repressiva.
Na discussão da sexualidade, nesse período entre o século XIX e o século XX, surge a psicanálise, ciência que se funda em bases teórico-metodológicas para analisar os indivíduos a partir das suas imagens subjacentes, sublinhando a importância das respostas instintivas que eram dadas pelas pessoas ao serem analisadas (LAPLANCHE E PONTALIS, 1986). Freud, ao iniciar o tratamento médicas das neuroses consideradas por ele como patologias do comportamento humano, deu grande contribuição à cultura moderna, com seus estudos sobre a sexualidade e a auto-identidade, num período, segundo Giddens, “ainda obscuro” na discussão dessa temática.
Para processar seus trabalhos, Freud criou o método dos sete conceitos fundamentais da psicanálise: conceitos de castração, falo narcisismo, sublimação, identificação, supereu e foroclusão.
Esses conceitos têm, ao longo do tempo, sido discutidos profundamente pelos profissionais da área da psicanálise e das outras ciências afins3. O estudo da psicanálise é muito profundo. Com ele, Freud vai até o ponto máximo das investigações dos processos inconscientes dos indivíduos, enfocando as instâncias identitárias dos mesmos, procurando avaliar em que momentos da vida os seres humanos romperam os seus laços de identificação com os seus genitores e criaram as suas identidades próprias, aportando a sua identificação a imagem materna, ou paterna, dependendo do seu sexo, até a formação da sua personalidade adulta.
Na sua abordagem, ele abre a discussão do complexo de Édipo que, segundo ele, é vivido na sua fase máxima entre os três e cinco anos de idade, no período da fase fálica, sendo de importância relevante na estruturação da personalidade, bem como na orientação do desejo humano.
Consideramos que não utilizaremos toda a teoria psicanalítica freudiana, para as discussões do nosso tema, mas sim, apenas alguns recortes complementares apostarão nossa discussão sobre identidade, mais especificamente, em outras interpretações que contemplam a priori a perspectiva da análise pretendida.
Sendo assim, passemos a abordagem do termo identidade. De antemão, cuidaremos de esclarecer que essa temática é por demais complexas, causando sempre certo desconforto aos estudiosos que dela se ocupam, aventurando-se a explicá-la. Tratar da identidade significa tratar do Eu, e tratar do Eu implica em tratar do Tu e do Eu - atividade relacional interativa. Nesse parecer, inexiste a singularidade absoluta do sujeito. Ou seja, o indivíduo somente se encontra a si mesmo, no seu cerne, em sintonia direta com outros indivíduos. Esta foi a base central do pensamento do psico-historiador Erik Erikon (1976)4 , que desenvolveu a expressão “crise de identidade” durante a segunda guerra mundial com pacientes que haviam “perdido o senso de igualdade pessoal e de continuidade histórica”.
Segundo definição do Dicionário do Pensamento Social do Século XX (1996), nas ciências sociais as discussões sobre a identidade assumem duas formas mais importante, a psicodinâmica e a sociológica. A primeira surge com a teoria de Freud sobre a identificação infantil com pessoas e objetos externos. A segunda está ligada ao interacionismo simbólico, se originando a partir da teoria pragmática do eu, discutida por James e Mead. Ambos discutiram a identidade na perspectiva interacionista do Eu consigo mesmo; o Eu interior, e depois com o social.
Na perspectiva dessa mesma explicação contamos com a abordagem de Erving Goffman (1975). Para este autor a representação do eu se dá na expectativa que o indivíduo cria para si mesmo sobre o modo como os outros irão percebê-lo, notá-lo compreendê-lo. Segundo Goffman, o indivíduo também cria expectativa quanto ao que ele espera dos indivíduos e os indivíduos esperam dele; “mantendo expressões e criando expectativas sobre si mesmas, mantendo impressões e criando expectativa sobre si mesmo, mantendo uma influência, que é recíproca, sobre os outros. No que se pode apreender disso é que os indivíduos se apresentam diante um do outro na tentativa de tanto incorporar, como demonstrar valores estabelecidos pela sociedade.
Este mesmo autor também reforça sua discussão sobre a questão da identidade no seu trabalho sobre estigmas, já citado por mim anteriormente, na parte que ele discute a questão do “Eu e Seu outro”. Goffman diz que: “O estigmatizado e o normal são partes um do outro; se alguém se pode mostrar vulnerável, outros também o podem. Porque ao imputar identidades aos indivíduos, desacreditáveis ou não, o conjunto social mais amplo e seus habitantes, de certa forma, se comprometeram, mostrando-se como tolos”. Cf. (Goffman, 1988: 146).
Sendo a identidade o referencial primordial qualificativo do indivíduo, visto que é a partir do seu reconhecimento que as pessoas se definem para interagir no meio social, e em instâncias antagônicas e diferenciadas na vida cotidiana, não possuir noções sobre a sua expressão é algo bastante inquietante para os indivíduos.
Em algum momento, em algum lugar, os seres humanos necessitam de se identificarem com alguém, ou com alguma coisa. Existem várias formas de expressão da identidade. Dentre tantas algumas se tornam mais significativas que outras, ao que nos parece ficando cada uma a critério da ação do próprio indivíduo no desenvolvimento dos seus papéis sociais.
Portanto, o conceito de identidade remete a idéia de construção do indivíduo, nas suas dimensões cognitivas de autopercepçao, bem como de suas dimensões inter-relacionais com outros indivíduos, e outras existências sociais.
Nesse parecer, a identidade se define em duas perspectivas diferentes, mas, que se interligam: identidade pessoal e identidade social. A identidade pessoal se constrói na autonomia física, no corpo, no biótipo, enquanto que a identidade social se constrói em função da condensação dos papéis sociais desenvolvidos pelo indivíduo nos contextos da sociedade.
Assim sendo, essas duas expressões da identidade: pessoal e social formam um conjunto contínuo, definidor do caráter dos indivíduos, visto que elas se complementam. No trato de uma representação da identidade que pode pessoal, ou social, o outro aparece de imediato, definindo assim, a similaridade de ambas.
Somos sabedores, de que existem muitas outras formas de representações da identidade: a de gênero, a nacional, a profissional, antropológica, sociológica, psicológica etc. Todavia, a identidade pessoal e a identidade social, são as únicas que definem o conjunto psicossocial dos indivíduos.
Contextualizando o nosso tema de pesquisa nessa discussão, quando pretendemos analisar a redefinição da identidade dos portadores do HIV-AIDS, no seu campo institucional-cultural e emocional, chegamos a constatação de que se faz significativo abordar a questão da identidade sob os dois prismas: social e pessoal, visto que, como já dissemos, eles coexistem na mesma intensidade, se diferenciando unicamente no exercício de papéis sociais e nas relações cotidianas.
Outro autor que analisa a questão da identidade, e que tomaremos no nosso referencial teórico é Christopher Lasch (1990). Segundo esse autor, a identidade possui um significado mutante. Os indivíduos são seres mutantes. Lasch vê nesse estado de mutação uma grande significação para as percepções mutantes tanto do eu, quanto do mundo exterior, ou o outro.
De acordo com Lasch: “o significado mutante de ‘identidade’ ilumina o vínculo entre as percepções mutantes do eu e as percepções mutantes do mundo exterior” (1990: 123). Nessa perspectiva se consolida a interligação entre as duas instâncias da identidade. Tratar de redefinição de identidade remete a discussão de crise de identidade, visto que o ato de redefinir implica em que houve conflitos, e incertezas em relação à identidade já definida. Pois, mesmo sendo mutante, estabelece definições.
Situando melhor a abordagem do conceito de crise, e agora na etimologia do tema, segundo o Novo Dicionário do Pensamento Social, já lançado posteriormente, “falamos “crise” em relação a sujeitos, a uma vida ou uma forma de vida, a um sistema ou uma “esfera” de ação. As crises decidem se uma coisa perdera ou não. O caso paradigmático de crise é a crise de vida, na qual, se levada ao extremo está se tratando de uma questão de vida ou morte”. A crise leva aos confrontos com as questões básicas: ser ou não ser, fazer ou não fazer, e nascem questões objetivas, mesmo, às vezes, o indivíduo não possuindo numa primeira instância, o conhecimento de onde ele se originou. Segundo Ott F. Bollnow (1974), a crise pode, e deve, ser o exterior, que são oriundos das transições das fases psicobiologicas, que não sofrem uma interferência da exterioridade, ou digamos, dos contextos sócio-políticos, nos quais o indivíduo está inserido. Ballnow diz que: “na crise, sempre se trata de um distúrbio no processo normal de vida; essa perturbação se destaca pelo caráter repentino do seu aparecimento e por sua intensidade fora do comum; na crise a continuidade de vida aparece totalmente ameaçada e pelo trânsito através da crise se estabelece por fim um novo estado de equilíbrio” (idem, 43). Ainda segundo Ballnow, a crise possui uma significação: ela é purificadora, onde o indivíduo procura livrar-se das impurezas e ressurgir novo, limpo, liberto; e é também uma decisão. O indivíduo deverá optar entre possibilidades, de modo que nessa opção ele recupere o equilíbrio biopsiquíco e se sinta restabelecido e pronto para retomar sua vida, visto que, na situação de crise ele pára as suas atividades. Entrar e sair da crise, segundo Ballnow, é um momento de êxodo e de êxito. É um novo despertar.
No que expomos até aqui, fica notório que a identidade está sempre em mutação, e que a mutação remete à crise.
No trato das nossas proposições de pesquisa, onde nos dispomos a investigar a redefinição da identidade dos portadores do HIV-Aids, que pressupomos, nas nossas sub hipótese, remetem a uma discussão de novas identidades, após a redefinição, e ao confronto com a rejeição e a exclusão social por parte das instituições formais: família, sexualidade, trabalho e religião; e a cultura dominante: valores ético-morais consideraram a discussão da identidade, tanto no contexto pessoal, quanto social, como fundamental para nossa abordagem teórica.
Tomando como referência que estes conceitos: identidade, redefinição de identidade, crise de identidade, não são definidos numa única perspectiva conceitual, recorremos aos autores já citados aqui: Freud, Goffman, Lasch e Ballnow, para darmos as explicações conceituais necessárias.
Nesse ponto encerramos nossa abordagem teórica, certa de que as lacunas, que sabemos existe, serão preenchidas, a contento, posteriormente.
Esta breve abordagem de temas tão contundentes e significativos à explicação dos processos sociais dos seres humanos, tratados a partir de autores como, Freud, Foucault, Giddens e Goffman, procura superar aquelas discussões acerca dos indivíduos definidos em função da dinâmica das sociedades globais tratados apenas como peças de uma engrenagem social, estruturada em bases formais, onde ele se perde por obedecer ao conjunto de normas e valores das culturas tradicionais, e se aventura a resgatar esse indivíduo, trazendo-o para a sua condição de sujeito humano, gestor e gerenciador dos seus desejos, arcando com as honerações, se houverem, mas vivendo sua autonomia.
Nesse parecer, abrimos a discussão quanto a um fenômeno cuja análise pressupõe, a nosso ver, este tipo de abordagem como a mais conveniente, corroborando e dando um maior significado à esse tipo de perspectiva. Trata-se dos estigmas da AIDS, que apontam para a necessidade de discutir questões relacionadas aos comportamentos sociais desviantes que foram se evidenciando ao longo do período de diagnosticação da doença, quando se apontou os grupos de risco como os responsáveis pela epidemia. A partir dessa primeira fase algumas questões essenciais foram levantadas: O que é? Como surgiu? Quem é o responsável? Quem são os afetados? E muitas outras. As primeiras representações que se construíram foram de negação: eu não tenho isso; eu não sou culpado por isso. No que se pode notar, perpassa um sentimento de “inocência” e de “medo” entre as pessoas que tentam encontrar respostas, jogando a responsabilidade por tal acontecimento nos outros. Joffe (1995), na sua pesquisa sobre as representações sociais transculturais da AIDS, intitulada: “Eu não”, “o meu grupo não”, se defronta com essa realidade da “negação do fenômeno” por parte das pessoas investigadas por ela: homossexuais, bissexuais, heterossexuais, que tentaram responsabilizar sempre “o outro” pelo surgimento da doença. Vejamos, nesta direção, o depoimento de um homem, negro, sul-africano, heterossexual:
“como eu ouvi dizer ela começou na Inglaterra... Ela começou entre um macaco e uma pessoa depois de uma relação sexual com o macaco... depois que ela teve relações sexuais com o macaco ela não se lavou e procurou a sua parceira. Então eles mantiveram relações. Então a parceira não se segurou, foi e teve relações com outro, e assim foi que ela se espalhou.” (JOFFE, 1995:308).
Segundo a pesquisa dessa autora, as pessoas estiveram sempre buscando culpados para esse fenômeno fora do seu contexto, e se punham distantes da possibilidade do seu envolvimento pessoal com a questão.
A AIDS foi sempre posta como uma realidade da qual todos se achavam distantes. No modo como ela foi notificada, o “direito” de pertencer a ela foi dado apenas aos “grupos de risco”. Apenas eles se encaixavam no perfil traçado pela equipe de médicos e pesquisadores da patogênese da AIDS. Sendo posta a distância de todos os que estavam fora desses “grupos de risco”, o questionamento de quem responderia por esse fenômeno tão sui generis, começou a aparecer. Todos foram veementes em dizer “eu não”, “o meu grupo não” (Cf. JOFFE, 1995). Segundo essa autora, não era dos negros, nem dos brancos, nem dos casados, nem dos solteiros, nem dos heterossexuais. Quem restou no cenário? as populações emergentes de comportamentos desviantes: os homossexuais (gays masculinos), as prostitutas, os viciados em droga. Pessoas promíscuas, culpadas. Foram sobre elas que se incidiu a responsabilidade. Um preço haveria de ser pago. No início da divulgação, a notícia da AIDS prescindia a iminência da morte. Esse seria o preço a ser pago (PAIVA, 1992).
METODOLOGIA E PROCEDIMENTO
A metodologia que utilizaremos no desenvolvimento de nossa pesquisa está articulada aos modelos e as técnicas indicadas para a análise qualitativa.
Um aspecto preponderante para a nossa escolha de análise é o fato desse modelo ser considerado no campo teórico metodológico, o que melhor convém as investigações ao âmbito da pesquisa em representações sociais, que tratam das vivências e influências dos indivíduos nos seus campos interativo-simbólico e imaginários.
Na discussão da pesquisa qualitativa, alguns autores têm proeminência: buscam provar que não somente os dados produzidos quantitativamente são significativos para a interpretação e validade dos dados levantados. As falas e as vivências, os modos de relacionamentos, os processos de interação social e simbólica, têm um grande significado no sentido de oferecer dados relevantes à compreensão dos indivíduos nas suas práticas cotidianas. O mínimo abstracional tem tanto valor quanto o racional.
Ao que nos parece, nessa forma de abordagem, se impõe um retorno ao período anterior ao racionalismo, senão, à uma tentativa de articulação das duas formas de análise. O que só beneficiará a produção do conhecimento científico.
Nosso argumento se sustenta em autores que, como já dissemos acima, desponta encampando essa luta. Faremos referência aqui a duas autoras, aqui no Brasil, que têm tratado da abordagem qualitativa com brilhantismo: Teresa Maria Frato Huguette (1995), e Maria Cecília de Souza Minayo (1996).
Huguette, no seu trabalho “Pesquisa Qualitativa em Sociologia” (1995), apresenta os fundamentos teóricos e técnicos de metodologias qualitativas na sociologia, criticando os métodos tradicionais, e propondo outros modelos alternativos de análise de dados. Esta autora, sugere as seguintes técnicas para coleta de dados: observação participante, histórias de vidas, pesquisa-ação, história oral, entrevistas com grupos.
São práticas de pesquisa que permitem uma melhor visão do indivíduo, no seu conjunto contextual social e biopsíquico. O que nós consideramos relevantes para as análises dos contextos sociais, a apreensão do mundo empírico e do mundo simbólico.
Faz-se notório que na abordagem temática, não há nenhuma atitude no sentido de desprestigiar, ou desqualificar outros modos de investigação, a exemplo do quantitativo. Até porque, o método quantitativo possui a sua validade intrínseca e relevante na produção de determinadas formas de aferir as realidades sociais, as quais só poderão ser mensuradas por ele. Todavia, o qualitativo, deve também, ser tomado como método de investigação e aferição, tão relevante quanto o quantitativo.
No centro da discussão de Huguette (1995), encontramos as explicações para determinados confrontos entre os modelos: empirismo e racionalismo. A disputa se centraliza no seguinte: quem possui melhor condição de garantir o domínio do real? A razão ou os sentidos?
Sendo este um campo de discussão polêmico e por isso estimulante, não temos condições de entrar nos seus meandros aqui, o que pretendemos retomar em outro momento. O que pretendemos por hora é apenas situar, pincelando, o eixo da discussão desse tema, visto do ponto de vista desta autora.
Outra abordagem sobre pesquisa qualitativa, que vem alcançando cada vez o reconhecimento nos meios acadêmicos é a da autora, já referida acima: Minayo (1996) “O Desafio do Conhecimento - pesquisa qualitativa em saúde”. Neste trabalho encontramos uma estimulante análise sobre os modelos, as técnicas, em pesquisa qualitativa no campo da pesquisa social em saúde. Minayo discute conceitos fundamentais na técnica da objetividade e da subjetividade, no campo da sociologia e da medicina. Analisa o momento de construção do objeto na fase exploratória da pesquisa, e também, aborda as várias modalidades de análises existentes: conceitos fundamentais na operacionalização da pesquisa, definição do objeto de pesquisa, construção de instrumentos de objetos, fases do trabalho de campo, modelos e técnicas de análise, etc.
No campo técnico-metodológico analisa as diversas modalidades existentes de análise qualitativa no trato do material pesquisado, sugerindo formas de fazê-lo com fundamentação numa prática hermenêutico-dialética.
Sem nenhuma pretensão, no sentido de tomar partido como defensora das duas autoras, mas reconhecendo o valor do trabalho de ambas, considerando nesse momento a superficialidade da nossa abordagem, dizemos que consideramos os trabalhos destas duas autoras de grande valia para aferição dos conteúdos empíricos, como forma de propostas para abrir o campo formal da pesquisa qualitativa, enriquecendo ainda mais a produção do conhecimento.
Sendo assim, com o intuito de encontrar métodos, técnicas e modelos adequados, para o tratamento teórico-metodológico da nossa pesquisa, buscaremos percorrer o caminho que melhor se nos apresenta, através da utilização da análise qualitativa, fundamentando nossos procedimentos nos autores apresentados: Huguette e Minayo, visto que elas apontam caminhos pertinentes às aferições de nossas proposições de pesquisa.
Procedimentos Operacionais
Diante da nossa temática, pretendemos conduzir a investigação em dois momentos:
a) No primeiro momento, tomaremos como referência da análise, os filmes - históricos e documentários - produzidos pela imprensa cinematográfica, procurando identificar nas representações dos atores situações similar à realidade vivida pelos portadores. São temas e discussões que pressupomos se materializarão na investigação do campo empírico do cotidiano dos indivíduos portadores do HIV-AIDS.
b) No segundo momento, trabalharemos diretamente com a população de portadores que estejam sendo atendidas nos ambulatórios de Doenças Sexualmente Transmissíveis dos hospitais: Correia Picanço e Hospital das Clínicas da UFPE, e no setor de Atendimento Psicológico da ONG ASAS (Associação de Ação Solidária), que atua com intervenção, através de uma equipe multiprofissional.
A população alvo constará de um universo amostral de 10 indivíduos portadores, que será localizada aleatoriamente, na faixa etária adulta, entendida moldes de PEA (População Economicamente Ativa), na RMR (Região Metropolitana do Recife). Esses atores serão selecionados nos critérios da voluntariedade, sem prerrogativas para alguns fatores, tais como: sexo, tipo de contágio e estágio da doença.
Procedimentos Técnicos
Será o da coleta de dados, através da utilização de entrevistas abertas e semi-estruturadas.
A análise dos dados será feita a partir da análise qualitativa definida nos moldes das autoras. Huguette (1995), e Minayo (1996), onde buscaremos tratar dos dados levantados, utilizando para tanto a técnica de análise de conteúdo.
Para a realização das entrevistas semi-estruturadas, onde os entrevistados falarão fluentemente sobre suas vivências, buscamos por meio de um roteiro de entrevistas previamente elaboradas, cristalizarem os indicadores das nossas variáveis, com a finalidade de responder o seguinte questionamento: como esses indivíduos se definiam antes da infecção? Como se definem agora, depois da doença? Como vêem a AIDS? O que é mais importante agora? O que pensam sobre o seu futuro? Como se percebem no presente? O que é mais importante na vida? Qual a interferência na sua vida afetiva? Qual a maior dificuldade encontrada depois dessa condição de portador?
CRONOGRAMA
Período: Mês e Ano
maio/junho de 1997
julho/agosto/setembro de 1997
janeiro/fevereiro de 1998
março de 1998
Tarefas
- Relação dos filmes que deverão ser tomados para análise na pesquisa.
- Levantamento da Bibliografia disponível referente ao assunto da pesquisa.
- Contatos com outras representações institucionais que trabalham na área do nosso assunto de pesquisa: Hospitais, ONG’s etc.
- Contatos com as coordenações dos locais onde pretendemos desenvolver a pesquisa.
- Contatos informais com os possíveis participantes da pesquisa (população alvo).
- Elaboração do roteiro das entrevistas.
- Início da pesquisa: realizando as entrevistas.
- Catalogação dos trechos dos filmes que serão analisados.
- Leitura e fichamento da bibliografia coletada.
- Transcrição, catalogação do material coletado nas entrevistas.
- Análise do material coletado nos filmes.
- Análise do material coletado nas entrevistas.
- Revisão final de todo o material coletado.
- Início da redação da dissertação.
- Final da redação.
-Revisão da redação.
- Entrega da dissertação para a defesa.
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INTRODUÇÃO
A AIDS na contemporaneidade se configura em um grande flagrante na sociedade. Seu advento traz embutidas questões de teor diverso, denunciadoras do modus vivendis das populações, tais como: formas de organização social; construção, compreensão e representações da realidade social empírica; redimensionamento das práticas de vida, a partir das leituras e apropriações dos textos com os quais vão se deparando na sua cotidianidade e no reordenamento das vivências.
Surgindo numa realidade histórica em que as grandes epidemias são dadas como erradicadas, pelo menos nos países desenvolvidos, a AIDS pôs em estado de inteira perplexidade toda a sociedade global, desdobrada nos seus diversos segmentos. A exemplo disso, poderemos citar algumas instituições sociais como o Estado, a ciência-médica, a família, a religião, o trabalho, e outras.
No trato dessa temática da AIDS se faz necessário, portanto, apreender as particularidades inerentes ao fenômeno que o tornam diferente de outros já ocorridos, como por exemplo, as grandes epidemias que assolaram o mundo: Peste Negra, Gripe Espanhola, Tuberculose, etc. Essas particularidades, que são bastante significativas, estão relacionadas às práticas de vida dos indivíduos no campo social e pessoal, identificadas como anormais, em alguns casos, por estarem dissociadas dos padrões éticos da moral social convencional não reconhecidos como componentes do padrão “normal” de vida social. Muitas delas eram vivenciadas numa atitude que se pode cognominar de clandestinidade, e que só começaram a fluir a partir da AIDS.
O tema da nossa pesquisa: “AIDS, gênero, exclusão: na redefinição da identidade dos indivíduos portadores”, nasce do nosso envolvimento com a problemática do fenômeno AIDS, num período em que estive em contato com outras pessoas que atuavam junto a essa questão, bem como com pessoas portadoras e seus familiares. Através desses contatos, de leituras de artigos em periódicos: jornais e revistas - alguns citados em nosso referencial bibliográfico, livros e filmes que assisti, me foi possível construir idéias, formalizando, assim, este tema.
A AIDS, desde a sua notificação no Brasil, no início da década de 1980, despertou a atenção de muitas pessoas. Pesquisadores, representações de grupos, iniciaram as lutas, para fazer frente à epidemia da AIDS.
Em Face De todo o mistério que envolveu o surgimento da AIDS, foram-se desenvolvendo paralelo a ele, alguns estudos e pesquisas, e também publicações, e campanhas esclarecedoras à população, na tentativa de se deter tal fenômeno.
No palco da produção do conhecimento, foram surgindo intelectuais, profissionais da saúde, representações governamentais e não governamentais, levantaram suas vozes para fazer ecoar o seu grito de alerta a todo o mundo.
Sendo a AIDS o fenômeno que se materializou na vida orgânica dos indivíduos, pondo-os no confronto direto com a sua finitude, com a idéia da morte iminente, e ainda, com o enfrentamento dos resultados de suas práticas de vida, na discussão do nosso tema, nos deparamos com categorias analíticas, implícitas a sua vida pessoal, social e cultural. Essas categorias são imbricadas de tal forma, que é quase impossível discutir AIDS, sem o confronto imediato com elas. Isto porque, tratar da questão do gênero significar tratar da vida afetiva das pessoas, dos papéis sociais por elas exercidas enquanto representantes da categoria masculina e feminina, sem ignorarmos aqui que, o trato da questão gênero não se encerra apenas nesses papéis. Gênero também se define na questão cultural das relações humanas, e no simbolismo do mundo dos significantes e significados. Tomando como referência o trabalho de Socorro Duarte (1996: 26), “A AIDS precisa ser vista no cotidiano dos indivíduos sob a ótica das questões de gênero, de classe social, de raça e de etnia que significam respectivamente os espaços ocupados por eles em sua realidade cotidiana”.
Além de estarmos plenamente de acordo com esta autora, vamos ainda mais adiante, para fortalecer o seu pensamento, dizendo que: se não tratamos do fenômeno por estas perspectivas, por quais trataríamos, visto que é na vida das pessoas, que estão por sua vez inseridos nos guetos sócio-culturais, que a AIDS se manifesta, se instala e os coloca em estado de plena vulnerabilidade em face de sociedade?
No que concerne ao subtítulo do nosso tema: “na redefinição da identidade dos portadores”, argumentamos que, primeiro: ao tratarmos da Aids tratamos da vida biopsíquica e social dos indivíduos, que significa, sua mundivisão, suas opções de vida afetiva e sexual, suas incertezas quanto ao futuro, sua escala de valores, e o reconhecimento de seu status, que segundo alguns relatos de profissionais que atendem pessoas portadoras e delas próprias, são tudo posto em questão (et. Camargo, 1994). Os indivíduos, após o diagnóstico médico da sua infecção por HIV - AIDS são postas num estado de muita incerteza, o que as leva a buscarem o sentido, que parece perdido, para a existência, definindo prioridades nos diversos campos de suas vidas, voltando a se inserirem nos campos sociais, assumindo novas posturas de vida.
A priori, esta é a explicação que consideramos necessária dar, situando essa questão da AIDS e do nosso tema de pesquisa. Na construção do problema e do referencial teórico retomaremos essa discussão, procurando definir melhor como essas questões poderão ser discutidas nas perspectivas de teóricos que tratam da análise conceitual dessas categorias.
Neste momento iremos notificar algumas produções relevantes sobre a AIDS aqui no Brasil, que têm contribuído significativamente no combate a essa epidemia. Os estudos sobre o HIV-AIDS tiveram seu início oficial aqui no Brasil com a atuação do Ministério da Saúde que criou um grupo de trabalho para planejamento e execução de tarefas para tratamento e prevenção da epidemia da AIDS, em 1988; o chamado: “Programa Nacional de DST/AIDS”, ou “Programa Nacional de Doenças Sexualmente Transmissíveis e AIDS”. Esse programa constou de duas partes: a primeira faz uma análise do território nacional geográfica e socialmente, analisando a situação da saúde no Brasil, a organização do sistema de atenção a saúde, o financiamento do setor saúde, a infecção pelo HIV e explicando o Programa Nacional de Controle e Prevenção, seus objetivos e as etapas que deveria ser desenvolvidos. Esse programa foi tomado como referência básica por todos os secretários de saúde estaduais e municipais, para elaboração dos seus programas locais.
Atualmente possuímos aqui no nosso Estado oito locais de referência para atendimento das pessoas portadoras, entre hospitais e centro de assistência social, e serviço de informação sobre o HIV-AIDS.
Na produção do conhecimento, contamos com a sua expansão em várias instâncias sociais: as ONG’s que atuam individualmente e também em parceria com os programas dos governos locais.
No que tange as ONG’s, em caráter nacional temos: a ABIA (associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS). Organizada em 1982, sob a presidência de Herbert de Souza. Contando com a colaboração de uma equipe interdisciplinar a ABIA tem como finalidade promover a educação e a informação para o controle e a prevenção da epidemia do HIV-Aids. Temos ainda o grupo Pela Vida (Pela Valorização, Integração e Dignidade do Doente de AIDS). Esta ONG se constitui basicamente por pessoas portadoras, seus familiares e amigos. Este grupo atua com franquia de seu slogan em vários estados do Brasil, além do Rio de Janeiro, onde se originou, está em São Paulo, Paraná, Espírito Santo, Vitória/ES, Goiás, Cascavel - Paraná. Atua com prevenção e intervenção jurídica. Dentre essas duas ONG’s, temos muitas outras que trabalham incansavelmente, que no momento nos é impossível citar as referências.
Na cidade do Recife, podemos enumerar algumas ONG’s que atuam expressivamente, são elas: a ASAS (Associação de Ação Solidária) criada em 1992, que atua na intervenção, através de uma equipe multiprofissional, e atende também aos familiares; o FORUM AIDS e a GESTOS, dentre outras.
Na produção acadêmica nacional, dentre outros, temos o IMS - UERJ (Instituto de Medicina Social do Rio de Janeiro), a FUMCAMP (Fundação de Desenvolvimento da Universidade de Campinas - São Paulo), o Hospital Emílio Ribas que é considerado como o maior hospital de referência do país a tratar as doenças patológicas da AIDS.
O nível local tem o NEPA do HC-UFPE (Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre AIDS), temos o Hospital Correa Picanço e o Hospital Oswaldo Cruz - UPE.
Contamos ainda com a produção acadêmica nos programas de pós-graduação da UPE e UFPE. Destacamos dentre tantas outras produções, os trabalhos de Socorro Duarte sobre “AIDS e Gênero na união conjugal”- Mestrado de Serviço Social (1996) e; de João Alberto sobre “Sexo/Pecado/Punição. A AIDS entre nós”, Mestrado de Antropologia.
Considerando, pois, já toda a produção sobre a AIDS, a exemplo do citado aqui, e a toda a outra do qual ainda não tomamos conhecimento, pretendemos também desenvolver nossa pesquisa sobre o assunto, na tentativa de dar nossa contribuição no trato desse fenômeno, procurando trazer à discussão aspectos ainda subjacentes, ou até mesmo reconhecidos, porém não aprofundador.
Desse modo, o que interessa pesquisar e que pensamos ser inovador na questão AIDS, não está definitivamente nas categorias proponentes do tema, e sim no estudo sociológico que intentaremos produzir sobre o fenômeno, buscando inserir a abordagem sociológica como contribuição interpretativa e reveladora, na análise dessa epidemia, já definida como um fato social global. Para uma melhor compreensão dessa questão global, veja Parker, 1994.
O que justifica a nossa pesquisa, pois, não é a pretensão de produzir mais um trabalho sobre a AIDS, para ser lido como algo inovador, elaborado em função da pungência do novo que essa epidemia desvela, mas sim tratar de um assunto que por dizer respeito a todos, também diz respeito à sociologia, e sem receio de estar entrando numa seara alheia.
Advogamos ainda, que, até pela razão de ser a ciência que estuda os comportamentos sociais dos indivíduos é de sua inteira competência tratar dessa questão, sendo este um dos fatores que também justifica nosso estudo.
Sendo assim, nossa pesquisa se justifica na perspectiva de que, em função da análise sociológica da condição de vida em que são postos os indivíduos pela sua infecção por HIV-Aids, sejam discutidas mudanças nas relações entre esses atores e os outros, não infectados, na intenção de propor a superação das diferenças, postas no trato dessas pessoas.
Questões como: a exclusão social, a perda de sentido da vida, os papéis sociais, a condição de gênero, a nova identidade cultural, social e pessoal, deverão ser tomadas como propostas para explicar os comportamentos dessas pessoas, e propor formas de vida diferentes, livres de preconceito moral, social e sexual vigentes. Até porque, cremos que pode ser a partir dessas mudanças, que a AIDS possa ser liberta de todo o estigma que lhe impuseram, e começar a ser vista e tratada sob outros olhares, dando outros resultados.
Faz-se urgente, pois, um somatório de esforços para alcançar essa nova realidade: a cura, o descobrimento de uma vacina que instaure nos portadores a alegria e a esperança pela vida, por um lado, e, por outro, um amplo investimento em programas de prevenção, afetiva e eficaz, que contribuam para o retorno do pensar o futuro sob outras perspectivas.
As particularidades das vivências das pessoas a que estamos nos referindo, materializam-se na cotidianidade de forma contundente e são cristalizadas pelos tipos de vida e pelos modos como elas se inscrevem nos campos sociais: grupos de pertença, lugares que freqüentam hábitos de vida diferenciados, e outros, aspectos que no momento não aprofundaremos, pois, são questões que serão mais bem identificadas e desenvolvidas posteriormente. Numa primeira instância, nossa pretensão é unicamente situá-las no cenário da temática em discussão: a redefinição da identidade individual e coletiva das pessoas vivendo com HIV-AIDS.
O PROBLEMA
A AIDS nos proporciona um momento histórico de profundas reflexões. Surgindo numa realidade social hedônica, em que o homem moderno aumentou a sua longevidade, pondo a idéia da morte cada vez mais distante de si, a AIDS aparece se inscrevendo no cenário social como um fato real e concernente a todos.
Segundo Carmargo (1994), a AIDS é a epidemia que, no final do século XX, tem representações semelhantes à tuberculose, ao câncer, e traz acrescida as categorias de ser sexualmente transmissível, de uma ação lenta do agente etiológico e da existência de um portador sadio.
Segundo a autora acima citada, quando as grandes epidemias, a exemplo da febre amarela, da varíola, etc., foram controladas, ou foram fracamente endêmicas, sempre surgiram outras, como a gripe espanhola que afetou continentes inteiros -1918 a 1919-, trazendo grande mortalidade para todo o globo. A tuberculose foi outra dessas epidemias de caráter infeccioso. Considerada a doença do século XIX e do início do século XX, e que só foi identificada após dizimar muitas vidas e após longo trabalho de investigação. Pela crueldade de seus danos ela foi tida como uma peste da urbanização, da industrialização e das precárias condições de vida do proletariado (Idem).
No limiar do final do século XX, surge a AIDS como a exterminadora do presente. Traz consigo o pânico da morte, o confronto com os limites humanos, com a redefinição do tempo da vida, ao mesmo tempo em que possibilita uma visão mais abrangente da mesma.
A epidemia da AIDS é formada por um conjunto de fatores que a definem e explicam de modo bastante complexo, o que, até hoje, ainda não é compreendido por um grande contingente da população. Isto pode ser justificado pelo modo como foi difícil para a própria ciência médica diagnosticar a etiologia da virose que se pressupunha, à época das primeiras investigações, serem causadoras daqueles óbitos.
As primeiras notícias sobre a AIDS chegam dos Estados Unidos em 1981, através de um órgão governamental americano: Center for Disease Control. Cidades como a Califórnia e Nova Yorque atestavam mortes de jovens e adultos masculinos que tinham em comum a homossexualidade e que ocorriam de forma inusitada, combinando raros tipos de cânceres com pneumonias comuns. Esses casos foram descritos como estados de imunodeficiência. Ou seja, uma diminuição dos recursos orgânicos tradicionalmente requisitados para manter o corpo “imune” às infecções (CAMARGO JR., 1994).
A epidemia da AIDS é, portanto, uma doença nova, tendo sido diagnosticada no princípio dos anos 80, pelos franceses e americanos. O termo “AIDS” é uma sigla originada do nome inglês: “Acquired Imune Deficiency Síndrome”, que se traduz por: “Síndrome da Imunodeficiência Adquirida” (em português se chama SIDA). O termo síndrome significa um conjunto de doenças que se manifesta em várias formas de mal-estar que aparecem juntas. No caso da AIDS, esse conjunto de doenças e sintomas pode ir de diarréias e vômitos, a gânglios inchados, sarcoma de kaposi (que é um tipo de câncer visível em doenças epidérmicas - manchas vermelhas-), e outras patologias como, doenças respiratórias, tuberculose, herpes, toxoplasmose, perda de peso acentuada e outros. Isto é, são sintomas e doenças conhecidas que, isoladamente, não seriam tão problemáticas, nem letais, como no contexto da AIDS (Informativo ABIA, 1994).
Nesse parecer, a sigla AIDS ou SIDA, se constitui num conjunto de termos, onde cada um deles possui o seu conceito próprio dentro da ciência biológica. São eles: Síndrome, Imunodeficiência e Adquirida.
Sendo assim, passaremos a explicar o significado de cada um desses termos, no intento de facilitar a compreensão da síndrome AIDS. Até porque, a não compreensão desses termos, se configura na grande dificuldade das pessoas apreenderem a gravidade da infecção pela AIDS.
O termo Imunodeficiência configura-se na falha das defesas do organismo. Uma doença que seria simples e até inofensiva numa pessoa saudável, no caso da AIDS assume um caráter complexo e de riscos significativos.
O conjunto celular do corpo é definido pelos cientistas como o “sistema imunitário”. Esse sistema é uma massa de tecidos e células espalhadas por todo o corpo. A organização desse conjunto de células funciona de modo a proteger o corpo de infecções. A AIDS é, pois, a doença do sistema imunitário, assim como a hepatite é a doença do fígado, a gastrite é a doença do estômago, etc. Portanto, com o sistema imunitário comprometido -em imunodeficiência- as infecções podem se tornar muito graves, mais do que realmente são. Essas infecções que se aproveitam das falhas do sistema imunitário são chamadas de infecções oportunistas (Idem).
O termo adquirida diz respeito ao aparecimento dos primeiros casos de AIDS. Segundo os patologistas, as doenças do sistema imunitário são raras. Algumas pessoas nascem com elas, outras as têm por razões desconhecidas, ou ainda, porque fizeram transplante, etc. Todavia, uma doença imunitária em caráter de epidemia, atingindo comunidades inteiras é algo inédito! A imunodeficiência é, em algum momento, “adquirida” pela pessoa.
Desse modo, a AIDS é uma doença imunológica, resultante de uma infecção por um vírus que é transmissível em circunstâncias determinadas de troca íntima de fluidos do corpo. Esta troca pode se dá através do ato sexual, da transfusão de sangue, da gestação, do nascimento e da amamentação (Idem).
O HIV é um retrovírus, o que significa que a sua forma de vida é a mais simples, arcaica e bruta. Tem curta duração de vida, morrendo rapidamente se forem mantidos por quinze minutos, mais ou menos, numa temperatura de 50ograus centígrados. Morre também ao contato de alguns minutos com vapores de formol, hipocloreto de sódio, ou outros (Idem). HIV significa Human Imunedeficiency Virus (Vírus da Imunodeficiência Humana). Trata-se de um vírus que possui características muito particulares e por isso pode passar, e, passa despercebida, por muito tempo no corpo dos seres humanos, sem se manifestar, ou então o faz num período de nove meses até seis anos. Infecta de modo lento, não apresentando sintomas de contágio. A transmissão ocorre através do contato íntimo de pessoas portadoras por via de relações sexuais, ou outros contatos dos líquidos orgânicos.
O sistema imune é o alvo do assalto do HIV. O vírus é um parasita que invade e se apropria, de preferência, da máquina genética de uma célula crítica do sistema de defesa humano: a chamada T auxiliadora, que tem como função incentivar as células que fazem os anticorpos e ajudam a controlar as infecções por fungos e bactérias. Para poder entrar na T auxiliar, o vírus HIV utiliza proteínas que ficam na superfície dessa célula, em particular a chamada CD4 (LEPARGNEUR, 1987). Em vez de transformar as células e multiplicá-las, como no câncer, este vírus destrói o linfócito T-4, que é a chave do sistema imunológico.
Portanto, dentro dessa discussão da Síndrome da Imunodeficiência Adquirida se distinguem dois estágios: um de soropositividade e, outro, de doença da AIDS. Esses são estágios diferenciados em que alguém pode ser um soro positivo assintomático por muito tempo, ou então, alguém já está com a manifestação dos sintomas da doença, é o que se considera como o estado avançado da infecção por HIV-AIDS. Essa é uma fase bem mais delicada na vida das pessoas, visto que elas se confrontam com a sua própria existência, a sua vida íntima e seus referenciais sociais na coletividade.
Diante do que está posto acerca dessa epidemia, fica notório que a AIDS se diferencia de outras já ocorridas no mundo por sua patogênesis: a AIDS é uma doença do sistema imunológico. Ela é adquirida pelo vírus HIV que ataca esse sistema celular e o enfraquece, levando as pessoas por ela alcançadas à morte. Esta é a constatação a qual tiveram, e ainda terão que chegar, as populações do mundo.
Frente ao exposto, um questionamento significativo se impõe, pois, mesmo sendo mais uma epidemia, a AIDS se diferencia muito das outras. Sendo assim, o que é que torna a AIDS tão diferente, o que há de subjacente a essa condição de epidemia que a torna tão apavorante, porque se tem tanto temor a AIDS?
De princípio, podemos afirmar que a AIDS se configura num fenômeno marcado por estigmas, o que pode ser facilmente verificado fazendo-se um resgate do período de seu surgimento. Caminho que pode apontar as respostas para essas e muitas outras questões.
Alguns estudiosos do assunto, pelo menos aqui no Brasil, tais como médicos especialistas em patologias diferentes como, os psiquiatras, infectologistas, e outros profissionais pesquisadores que também atuam junto a vida emocional e social das pessoas como, as assistentes sociais, psicólogos, antropólogos, sociólogos, e demais, são unânimes em constatar que algumas das razões que explicam o estigma dessa epidemia estão calcadas em alguns conceitos utilizados para divulgação da AIDS. Esses conceitos dizem respeito ao modo como ela foi notificada, através da mídia, para o globo: “uma peste dos culpados” (PARKER, 1994). A AIDS era uma doença de “grupos de risco”. Esses grupos se dividiam em “vítimas” (hemofílicos) e “promíscuos” (homossexuais, prostitutas, viciados em drogas). Durante mais de dez anos, as idéias sobre esse fenômeno foram as mais distorcidas possíveis. Falava-se muito mais na pessoa que estava doente, do que na própria doença. Essas pessoas chamavam mais a atenção do que a doença (PAIVA, 1992).
Outra explicação pode ser dada considerando que a constatação da infecção pelo HIV-Aids coloca as pessoas numa situação de completa vulnerabilidade face aos desvelamentos que essa condição provoca. E ainda, porque essa condição de portador do HIV-Aids implica na inserção dessas pessoas nos grupos de indivíduos definitivamente marcados no seu meio social.
A condição de marcado pelo HIV-Aids é a condição de pessoa estigmatizada. Aqui se faz necessário uma rápida explicação sobre esse fenômeno estigmatizado. Na perspectiva do teórico Ervening Goffman (1988), que no seu trabalho discute a condição social em que são postas as pessoas quando guardam em seu corpo físico, ou moral, sinais ou marcas, que os distinguem dos demais e por conta disso se encontra numa condição de inaptas para o convívio em sociedade. Segundo o autor, o estigma é, pois, um tipo especial de relação entre o atributo e o estereótipo. Ou seja, o estigmatizado é o sujeito inserido no convívio da sociedade, com seu conjunto de normas e valores, mas que se destaca porque possui uma marca física, ou patologia social, sem desconsiderar a estrutura social e moral da sociedade. Em função dessas suas condições, o estigmatizado necessitará assumir posturas de vida que possibilitem continuar inserido nos contextos sociais.
Sendo a AIDS o fenômeno social que pôs as claras à intimidade dos indivíduos, nas suas práticas sexuais, culturais, afetivas, bem como a própria sociedade nas suas representações institucionais: por exemplo, a ciência médica, das políticas de saúde, do uso do sangue transferido, ela pode ser lida como a epidemia que possibilitou os estigmas à vida dos indivíduos.
Portanto, no que concerne ao nosso tema de pesquisa, onde nos propomos investigar a redefinição dos portadores do HIV-Aids, tomaremos a condição de portador como nossa variável independente, bem como fixaremos nosso olhar nos modos como estão inseridos esses indivíduos estigmatizados, em função da sua representação de gênero e da interação nos campos institucionais e culturais, e também na sua vida emocional.
Sendo assim, na perspectiva da problemática AIDS exposta até aqui, que aponta para a necessidade de um repensar da vivência e a necessidade de uma reconstrução da vida após um diagnóstico médico da infecção a pergunta que se impõe é a seguinte: Como os portadores do HIV-Aids redefinem as suas instâncias identitárias? Considerando, também, que a condição de portador é a condição de pessoas estigmatizadas social, cultural e moralmente, perguntamos como a condição de gênero influi na construção de novas identidades; e como os indivíduos se redefinem em função da exclusão social que sofrem?
Para tentar responder a tal questionamento levantamos as seguintes pressuposições, que tomamos como hipótese central e sub-hipóteses.
Hipótese Central:
A condição de portador do HIV-Aids desencadeia um processo de redefinição da identidade tanto na perspectiva institucional-cultural, como emocional.
Sub hipóteses:
1) A nova identidade de portador é em parte determinada pela condição de gênero;
2) O indivíduo é excluído social e culturalmente, em função da sua condição de portador.
Nesse sentido, nosso objetivo com a realização deste estudo se materializa em duas intenções: a primeira, que identificamos como o objetivo geral, é analisar a redefinição da identidade dos indivíduos portadores do HIV-AIDS. A segunda, que se constitui em nossos objetivos específicos, é:
a) identificar as novas identidades construídas pelos portadores, e a sua significação institucional-cultural na condição de gênero.
b) analisar a rejeição e a exclusão social sob que os portadores são postos.
c) contribuir, com a análise sociológica do fenômeno AIDS, para a explicação dos contextos da realidade social em que são postos os indivíduos na sua condição de portador.
Somos do pensamento, como outros autores (Camargo Jr., 1994) que tomou o fenômeno da Síndrome da AIDS, reconhecer nele construções metodológicas categorizavam a partir do enfoque sociológico é o grande desafio a que nos estamos propondo, ao tempo que não negamos a sua característica de doença muito grave, que demanda um trato terapêutico intensivo, como até poderiam pensar algumas pessoas, e sim, abre a expectativa para a discussão dessa temática no âmbito novo da ciência, fato que poderá se constituir numa contribuição significativa para o vislumbramento das soluções eficazes para o problema.
REFERENCIAL TEÓRICO
No trato do tema da nossa pesquisa, onde nos propomos a investigar as representações sociais e imaginárias das pessoas portadoras do HIV-AIDS, que pressupomos se expressam a partir da condição de pessoa doente ou portadora, quando do diagnóstico médico, encontramos os indivíduos no confronto direto com a necessidade de redefinição de sua identidade, tanto no que tange a sua individualidade, quanto a sua coletividade, seus grupos de pertença.
As representações sociais e imaginárias já construídas, pressupomos, passam por uma desconstrução e uma nova construção. Se eles já tinham todo o seu conjunto discursivo, interpretativo de uma dada realidade social e do seu papel de indivíduos, pressupõe-se que, após essa nova condição de vida, eles buscam novas interpretações, criam outros símbolos e outras imagens, o que nos leva a crer que seu campo psicossocial e a sua inserção no seu contexto institucional, passa por mudanças profundas. O mundo de significados e significantes muda.
Dar um novo sentido a vida é a necessidade com a qual todos se deparam. Sentimentos de ordens diversas emergem, os laços sociais são estremecidos, os laços afetivos se quebram, ou se fortalecem. A crise de solidão é intensa, e como conseqüência nasce a insegurança quanto ao futuro. É justamente a partir desse estágio que nasce a necessidade de uma redefinição das instâncias identitárias. No plano individual e no plano da coletividade nova representações sociais e imaginárias nasceriam.
Portanto, em nosso estudo sobre representação social e imaginária e AIDS, fixaremos o nosso olhar com mais intensidade na tentativa de identificar quais são as representações sociais da AIDS construídas pelas pessoas portadoras, destacando o modo como o fazem, em função das experiências já vivenciadas, do diagnóstico-médico da sua nova condição de vida: pessoa portadora ou doente de AIDS.
Apesar de existir muitas outras formas para abordar esse tema no que diz respeito às formações sociais, as características pessoais, aos tipos de postura na opção de vida e muitas outras, optamos por investigar as características psicossociais.
Certamente não há nada subjacente a essa escolha, a não ser o interesse premente de aprofundar melhor o estudo quanto a essa nova pandemia. E, ainda, porque entendemos que o trato desse tema é algo bastante delicado, e que somente indo diretamente à população portadora é que obteremos os dados com segurança quanto a sua veracidade.
Somos do pensamento, como tantos outros autores (Schuch, 1996), de que abordar este tema torna-se relevante por muitas razões e, muito especialmente, porque essa síndrome, que vem atingindo um número crescente de pessoas nos seus modos diversos de se perceberem dentro dessa nova realidade, está ligada com novas formas das pessoas se olharem, com o trato do seu aparelho psíquico, e com a redefinição de suas instâncias identitárias na vida individual e coletiva, o que acreditamos trará uma grande contribuição para a compreensão da realidade social a partir de uma nova ótica.
Lidar com as questões bio-psíquicas dos indivíduos demanda sempre todo um trato diferenciado, e quando diz respeito às pessoas afetadas por uma doença como a AIDS, esse cuidado deverá ser redobrado. Isto porque, desde o seu aparecimento, a AIDS preocupou as pessoas em função de ser transmitida a partir de relações interpessoais e de que suas várias formas de diagnosticar o contágio trazem à tona questões da intimidade, o que deixa os seres humanos em situações conflitantes.
A AIDS se inscreve num período da vida social em que a intimidade passa por grandes transformações. A sua caracterização inicial de doença infecto-contagiosa, incurável, mortal, vinculada em primeira instância a homossexualidade, fez o seu aporte em muitos estigmas: pessoas que se decidiram por viver a vida e a sua sexualidade de modo alternativo, seriam castigadas com a morte por AIDS.
Desse modo, o peso social da AIDS é muito grande. Ela se afigura num fenômeno que se materializou no corpo das pessoas, e é esse um dos fatores que a diferencia das outras epidemias. Segundo Rouet (1996:16), “a SIDA, mais do que qualquer outra doença, tornou-se um fenômeno social muito importante; ela transtorna a escola, a empresa, a justiça, a igreja”. Fazendo um aporte na escrita do autor, acrescentamos que ela, também, flagrou o próprio portador na sua instância identitária, nos seus grupos de pertença, tais como, a família, a religião e o trabalho.
“Estar doente é ter passado por diversas etapas, é ser levado a passar por outras. Em primeiro lugar houve o anúncio da contaminação com o prognóstico, inevitável no atual estado de conhecimentos, de morte num prazo mais ou menos longo. Depois vem a fase de soropositividade sem sintomas, sem sinais físicos de doença, quando a pessoa acometida vive na expectativa ou na angústia de reorganizar seu modo de vida, durante alguns meses ou anos” (idem, ibdem).
Outro fenômeno é o de que ela põe as claras as práticas de vida, os modos como o imaginário social é construído, as expectativas quanto ao futuro, o medo da doença, da morte iminente, a certeza da finitude.
A condição de portador do HIV-AIDS parece ser a condição sine qua non para que busque outros modos para viver sua vida, redefinindo as relações com o tempo, reconstruindo as relações institucionais e afetivas, cotidianidade, as posturas em face de sua condição de gênero, a sua vida pessoal e profissional, ao seu status quo, e as questões ontológicas.
Na discussão desse assunto podemos tomar os trabalhos de Giddens (1992), que faz uma análise minuciosa e brilhante da sociedade moderna e das novas formas de expressão das relações afetivas. Questiona como se tem manifestado a sexualidade e que relações guardam com as mudanças gerais que têm afetado a vida pessoal dos indivíduos. Discute o papel da sexualidade, que chama de “sexualidade plástica”. Segundo ele, “a sexualidade plástica é a sexualidade descentralizada, liberta das necessidades de reprodução”. “A sexualidade plástica pode ser caracterizada como um traço da personalidade e, desse modo, está intrinsecamente vinculado ao eu” (GIDDENS, 1992:10).
As mudanças na intimidade que são marcantes e profundas passam a ser os indicadores para as novas formas de vida. Giddens diz que a história emocional das sociedades modernas é secreta, porém ela está prestes a ser desvelada completamente. Ele diz que “é uma história de buscas sexuais dos homens, mantidos separados de suas identidades públicas” (Idem: 11). Esse argumento do autor é bastante pertinente, e se funda exatamente no que estamos observando na contemporaneidade: o gênero masculino e feminino busca novas formas de negociações dos vínculos pessoais, em todos os aspectos da sua vida, partindo para o que o autor chama de “democratização do domínio interpessoal”, de modo que haja uma compatibilidade da vida nesse campo e no campo da esfera pública. A transformação da intimidade, ao que nos parece, vem forçando os campos sociais nas suas instituições de estruturas engessadas, no sentido de ganhar outras expressões, e as pessoas a buscarem uma redefinição de sua identidade. Havia uma intimidade velada, escondida, sufocada, desrespeitada. Com as mudanças sociais de caráter diversos na esfera pública, na economia e no trabalho, com a secularização da própria religião, a intimidade se ergue buscando que se admita também a sua transformação.
Nessa perspectiva, fluem com toda força questões latentes, subjacentes nos convívios interpessoais. As mulheres não admitem mais a dominação sexual masculina, os homens não conseguem digerir as novas opções de vida das mulheres, e outras formas alternativas de vida, que já existiam, são postas as claras. Dentro desse panorama, inscrevem-se os novos grupos sociais emergentes. São grupos de pessoas que têm um comportamento “desviante”, e que viviam no silêncio dos contextos sociais. Todavia, com a intimidade posta em evidência, mostrando que ela está sendo transformada, abre-se a possibilidade desses grupos se expressarem. Nesse parecer, inscrevem-se os homossexuais, um grupo que aparece com muita expressão organizativa, mostrando que a sexualidade é uma esfera privada, que o seu domínio é, portanto, do campo individual de cada ser humano, por isso é íntimo, é privado. Giddens ao abordar a discussão desse grupo diz que:
“as comunidades culturais gays que surgiram nas cidades americanas, assim como em muitas áreas urbanas da Europa, proporcionaram uma nova face pública para a homossexualidade”. “Em um nível mais pessoal, no entanto, o termo gay também trouxe com ele uma referência cada vez mais difundida à sexualidade como uma qualidade ou propriedade do eu” (Idem:24)
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Sendo assim, na atualidade a sexualidade tem sido desnuda, revelada, sugerindo o desenvolvimento de estilos alternativos para sua expressão.
Tratar da discussão da sexualidade significa tratar dos modos como os seres humanos se percebem, se definem se identificam. Giddens ancora sua discussão da transformação da intimidade nos trabalhos de Foucault.
A análise que esse autor faz da sexualidade é uma análise histórica, partindo do século XVIII ao XX, onde ele pressupõe que se inicia a discussão aberta da sexualidade-, em que ele situa o surgimento do fenômeno da sexualidade como a expressão do poder disciplinar. Na sua discussão da sexualidade Foucault produziu um trabalho em que chama a atenção para o que ele denomina de “a hipótese repressiva” 2•, que aponta para o fato de que as instituições modernas, segundo ele, levaram as pessoas a pagarem preços pelos benefícios recebidos por parte dessas sociedades. Na análise foucaultiana da “hipótese repressiva” , o “poder disciplinar” emerge como o mecanismo que coage os indivíduos a reprimirem a sua sexualidade. Segundo Giddens, esse poder produzia supostamente “corpos dóceis”, controlados e regulados em suas atividades, em vez de espontaneamente capazes de atuar sobre os impulsos do desejo. Nesse sentido, o poder se expressa como um mecanismo de força repressiva.
Na discussão da sexualidade, nesse período entre o século XIX e o século XX, surge a psicanálise, ciência que se funda em bases teórico-metodológicas para analisar os indivíduos a partir das suas imagens subjacentes, sublinhando a importância das respostas instintivas que eram dadas pelas pessoas ao serem analisadas (LAPLANCHE E PONTALIS, 1986). Freud, ao iniciar o tratamento médicas das neuroses consideradas por ele como patologias do comportamento humano, deu grande contribuição à cultura moderna, com seus estudos sobre a sexualidade e a auto-identidade, num período, segundo Giddens, “ainda obscuro” na discussão dessa temática.
Para processar seus trabalhos, Freud criou o método dos sete conceitos fundamentais da psicanálise: conceitos de castração, falo narcisismo, sublimação, identificação, supereu e foroclusão.
Esses conceitos têm, ao longo do tempo, sido discutidos profundamente pelos profissionais da área da psicanálise e das outras ciências afins3. O estudo da psicanálise é muito profundo. Com ele, Freud vai até o ponto máximo das investigações dos processos inconscientes dos indivíduos, enfocando as instâncias identitárias dos mesmos, procurando avaliar em que momentos da vida os seres humanos romperam os seus laços de identificação com os seus genitores e criaram as suas identidades próprias, aportando a sua identificação a imagem materna, ou paterna, dependendo do seu sexo, até a formação da sua personalidade adulta.
Na sua abordagem, ele abre a discussão do complexo de Édipo que, segundo ele, é vivido na sua fase máxima entre os três e cinco anos de idade, no período da fase fálica, sendo de importância relevante na estruturação da personalidade, bem como na orientação do desejo humano.
Consideramos que não utilizaremos toda a teoria psicanalítica freudiana, para as discussões do nosso tema, mas sim, apenas alguns recortes complementares apostarão nossa discussão sobre identidade, mais especificamente, em outras interpretações que contemplam a priori a perspectiva da análise pretendida.
Sendo assim, passemos a abordagem do termo identidade. De antemão, cuidaremos de esclarecer que essa temática é por demais complexas, causando sempre certo desconforto aos estudiosos que dela se ocupam, aventurando-se a explicá-la. Tratar da identidade significa tratar do Eu, e tratar do Eu implica em tratar do Tu e do Eu - atividade relacional interativa. Nesse parecer, inexiste a singularidade absoluta do sujeito. Ou seja, o indivíduo somente se encontra a si mesmo, no seu cerne, em sintonia direta com outros indivíduos. Esta foi a base central do pensamento do psico-historiador Erik Erikon (1976)4 , que desenvolveu a expressão “crise de identidade” durante a segunda guerra mundial com pacientes que haviam “perdido o senso de igualdade pessoal e de continuidade histórica”.
Segundo definição do Dicionário do Pensamento Social do Século XX (1996), nas ciências sociais as discussões sobre a identidade assumem duas formas mais importante, a psicodinâmica e a sociológica. A primeira surge com a teoria de Freud sobre a identificação infantil com pessoas e objetos externos. A segunda está ligada ao interacionismo simbólico, se originando a partir da teoria pragmática do eu, discutida por James e Mead. Ambos discutiram a identidade na perspectiva interacionista do Eu consigo mesmo; o Eu interior, e depois com o social.
Na perspectiva dessa mesma explicação contamos com a abordagem de Erving Goffman (1975). Para este autor a representação do eu se dá na expectativa que o indivíduo cria para si mesmo sobre o modo como os outros irão percebê-lo, notá-lo compreendê-lo. Segundo Goffman, o indivíduo também cria expectativa quanto ao que ele espera dos indivíduos e os indivíduos esperam dele; “mantendo expressões e criando expectativas sobre si mesmas, mantendo impressões e criando expectativa sobre si mesmo, mantendo uma influência, que é recíproca, sobre os outros. No que se pode apreender disso é que os indivíduos se apresentam diante um do outro na tentativa de tanto incorporar, como demonstrar valores estabelecidos pela sociedade.
Este mesmo autor também reforça sua discussão sobre a questão da identidade no seu trabalho sobre estigmas, já citado por mim anteriormente, na parte que ele discute a questão do “Eu e Seu outro”. Goffman diz que: “O estigmatizado e o normal são partes um do outro; se alguém se pode mostrar vulnerável, outros também o podem. Porque ao imputar identidades aos indivíduos, desacreditáveis ou não, o conjunto social mais amplo e seus habitantes, de certa forma, se comprometeram, mostrando-se como tolos”. Cf. (Goffman, 1988: 146).
Sendo a identidade o referencial primordial qualificativo do indivíduo, visto que é a partir do seu reconhecimento que as pessoas se definem para interagir no meio social, e em instâncias antagônicas e diferenciadas na vida cotidiana, não possuir noções sobre a sua expressão é algo bastante inquietante para os indivíduos.
Em algum momento, em algum lugar, os seres humanos necessitam de se identificarem com alguém, ou com alguma coisa. Existem várias formas de expressão da identidade. Dentre tantas algumas se tornam mais significativas que outras, ao que nos parece ficando cada uma a critério da ação do próprio indivíduo no desenvolvimento dos seus papéis sociais.
Portanto, o conceito de identidade remete a idéia de construção do indivíduo, nas suas dimensões cognitivas de autopercepçao, bem como de suas dimensões inter-relacionais com outros indivíduos, e outras existências sociais.
Nesse parecer, a identidade se define em duas perspectivas diferentes, mas, que se interligam: identidade pessoal e identidade social. A identidade pessoal se constrói na autonomia física, no corpo, no biótipo, enquanto que a identidade social se constrói em função da condensação dos papéis sociais desenvolvidos pelo indivíduo nos contextos da sociedade.
Assim sendo, essas duas expressões da identidade: pessoal e social formam um conjunto contínuo, definidor do caráter dos indivíduos, visto que elas se complementam. No trato de uma representação da identidade que pode pessoal, ou social, o outro aparece de imediato, definindo assim, a similaridade de ambas.
Somos sabedores, de que existem muitas outras formas de representações da identidade: a de gênero, a nacional, a profissional, antropológica, sociológica, psicológica etc. Todavia, a identidade pessoal e a identidade social, são as únicas que definem o conjunto psicossocial dos indivíduos.
Contextualizando o nosso tema de pesquisa nessa discussão, quando pretendemos analisar a redefinição da identidade dos portadores do HIV-AIDS, no seu campo institucional-cultural e emocional, chegamos a constatação de que se faz significativo abordar a questão da identidade sob os dois prismas: social e pessoal, visto que, como já dissemos, eles coexistem na mesma intensidade, se diferenciando unicamente no exercício de papéis sociais e nas relações cotidianas.
Outro autor que analisa a questão da identidade, e que tomaremos no nosso referencial teórico é Christopher Lasch (1990). Segundo esse autor, a identidade possui um significado mutante. Os indivíduos são seres mutantes. Lasch vê nesse estado de mutação uma grande significação para as percepções mutantes tanto do eu, quanto do mundo exterior, ou o outro.
De acordo com Lasch: “o significado mutante de ‘identidade’ ilumina o vínculo entre as percepções mutantes do eu e as percepções mutantes do mundo exterior” (1990: 123). Nessa perspectiva se consolida a interligação entre as duas instâncias da identidade. Tratar de redefinição de identidade remete a discussão de crise de identidade, visto que o ato de redefinir implica em que houve conflitos, e incertezas em relação à identidade já definida. Pois, mesmo sendo mutante, estabelece definições.
Situando melhor a abordagem do conceito de crise, e agora na etimologia do tema, segundo o Novo Dicionário do Pensamento Social, já lançado posteriormente, “falamos “crise” em relação a sujeitos, a uma vida ou uma forma de vida, a um sistema ou uma “esfera” de ação. As crises decidem se uma coisa perdera ou não. O caso paradigmático de crise é a crise de vida, na qual, se levada ao extremo está se tratando de uma questão de vida ou morte”. A crise leva aos confrontos com as questões básicas: ser ou não ser, fazer ou não fazer, e nascem questões objetivas, mesmo, às vezes, o indivíduo não possuindo numa primeira instância, o conhecimento de onde ele se originou. Segundo Ott F. Bollnow (1974), a crise pode, e deve, ser o exterior, que são oriundos das transições das fases psicobiologicas, que não sofrem uma interferência da exterioridade, ou digamos, dos contextos sócio-políticos, nos quais o indivíduo está inserido. Ballnow diz que: “na crise, sempre se trata de um distúrbio no processo normal de vida; essa perturbação se destaca pelo caráter repentino do seu aparecimento e por sua intensidade fora do comum; na crise a continuidade de vida aparece totalmente ameaçada e pelo trânsito através da crise se estabelece por fim um novo estado de equilíbrio” (idem, 43). Ainda segundo Ballnow, a crise possui uma significação: ela é purificadora, onde o indivíduo procura livrar-se das impurezas e ressurgir novo, limpo, liberto; e é também uma decisão. O indivíduo deverá optar entre possibilidades, de modo que nessa opção ele recupere o equilíbrio biopsiquíco e se sinta restabelecido e pronto para retomar sua vida, visto que, na situação de crise ele pára as suas atividades. Entrar e sair da crise, segundo Ballnow, é um momento de êxodo e de êxito. É um novo despertar.
No que expomos até aqui, fica notório que a identidade está sempre em mutação, e que a mutação remete à crise.
No trato das nossas proposições de pesquisa, onde nos dispomos a investigar a redefinição da identidade dos portadores do HIV-Aids, que pressupomos, nas nossas sub hipótese, remetem a uma discussão de novas identidades, após a redefinição, e ao confronto com a rejeição e a exclusão social por parte das instituições formais: família, sexualidade, trabalho e religião; e a cultura dominante: valores ético-morais consideraram a discussão da identidade, tanto no contexto pessoal, quanto social, como fundamental para nossa abordagem teórica.
Tomando como referência que estes conceitos: identidade, redefinição de identidade, crise de identidade, não são definidos numa única perspectiva conceitual, recorremos aos autores já citados aqui: Freud, Goffman, Lasch e Ballnow, para darmos as explicações conceituais necessárias.
Nesse ponto encerramos nossa abordagem teórica, certa de que as lacunas, que sabemos existe, serão preenchidas, a contento, posteriormente.
Esta breve abordagem de temas tão contundentes e significativos à explicação dos processos sociais dos seres humanos, tratados a partir de autores como, Freud, Foucault, Giddens e Goffman, procura superar aquelas discussões acerca dos indivíduos definidos em função da dinâmica das sociedades globais tratados apenas como peças de uma engrenagem social, estruturada em bases formais, onde ele se perde por obedecer ao conjunto de normas e valores das culturas tradicionais, e se aventura a resgatar esse indivíduo, trazendo-o para a sua condição de sujeito humano, gestor e gerenciador dos seus desejos, arcando com as honerações, se houverem, mas vivendo sua autonomia.
Nesse parecer, abrimos a discussão quanto a um fenômeno cuja análise pressupõe, a nosso ver, este tipo de abordagem como a mais conveniente, corroborando e dando um maior significado à esse tipo de perspectiva. Trata-se dos estigmas da AIDS, que apontam para a necessidade de discutir questões relacionadas aos comportamentos sociais desviantes que foram se evidenciando ao longo do período de diagnosticação da doença, quando se apontou os grupos de risco como os responsáveis pela epidemia. A partir dessa primeira fase algumas questões essenciais foram levantadas: O que é? Como surgiu? Quem é o responsável? Quem são os afetados? E muitas outras. As primeiras representações que se construíram foram de negação: eu não tenho isso; eu não sou culpado por isso. No que se pode notar, perpassa um sentimento de “inocência” e de “medo” entre as pessoas que tentam encontrar respostas, jogando a responsabilidade por tal acontecimento nos outros. Joffe (1995), na sua pesquisa sobre as representações sociais transculturais da AIDS, intitulada: “Eu não”, “o meu grupo não”, se defronta com essa realidade da “negação do fenômeno” por parte das pessoas investigadas por ela: homossexuais, bissexuais, heterossexuais, que tentaram responsabilizar sempre “o outro” pelo surgimento da doença. Vejamos, nesta direção, o depoimento de um homem, negro, sul-africano, heterossexual:
“como eu ouvi dizer ela começou na Inglaterra... Ela começou entre um macaco e uma pessoa depois de uma relação sexual com o macaco... depois que ela teve relações sexuais com o macaco ela não se lavou e procurou a sua parceira. Então eles mantiveram relações. Então a parceira não se segurou, foi e teve relações com outro, e assim foi que ela se espalhou.” (JOFFE, 1995:308).
Segundo a pesquisa dessa autora, as pessoas estiveram sempre buscando culpados para esse fenômeno fora do seu contexto, e se punham distantes da possibilidade do seu envolvimento pessoal com a questão.
A AIDS foi sempre posta como uma realidade da qual todos se achavam distantes. No modo como ela foi notificada, o “direito” de pertencer a ela foi dado apenas aos “grupos de risco”. Apenas eles se encaixavam no perfil traçado pela equipe de médicos e pesquisadores da patogênese da AIDS. Sendo posta a distância de todos os que estavam fora desses “grupos de risco”, o questionamento de quem responderia por esse fenômeno tão sui generis, começou a aparecer. Todos foram veementes em dizer “eu não”, “o meu grupo não” (Cf. JOFFE, 1995). Segundo essa autora, não era dos negros, nem dos brancos, nem dos casados, nem dos solteiros, nem dos heterossexuais. Quem restou no cenário? as populações emergentes de comportamentos desviantes: os homossexuais (gays masculinos), as prostitutas, os viciados em droga. Pessoas promíscuas, culpadas. Foram sobre elas que se incidiu a responsabilidade. Um preço haveria de ser pago. No início da divulgação, a notícia da AIDS prescindia a iminência da morte. Esse seria o preço a ser pago (PAIVA, 1992).
METODOLOGIA E PROCEDIMENTO
A metodologia que utilizaremos no desenvolvimento de nossa pesquisa está articulada aos modelos e as técnicas indicadas para a análise qualitativa.
Um aspecto preponderante para a nossa escolha de análise é o fato desse modelo ser considerado no campo teórico metodológico, o que melhor convém as investigações ao âmbito da pesquisa em representações sociais, que tratam das vivências e influências dos indivíduos nos seus campos interativo-simbólico e imaginários.
Na discussão da pesquisa qualitativa, alguns autores têm proeminência: buscam provar que não somente os dados produzidos quantitativamente são significativos para a interpretação e validade dos dados levantados. As falas e as vivências, os modos de relacionamentos, os processos de interação social e simbólica, têm um grande significado no sentido de oferecer dados relevantes à compreensão dos indivíduos nas suas práticas cotidianas. O mínimo abstracional tem tanto valor quanto o racional.
Ao que nos parece, nessa forma de abordagem, se impõe um retorno ao período anterior ao racionalismo, senão, à uma tentativa de articulação das duas formas de análise. O que só beneficiará a produção do conhecimento científico.
Nosso argumento se sustenta em autores que, como já dissemos acima, desponta encampando essa luta. Faremos referência aqui a duas autoras, aqui no Brasil, que têm tratado da abordagem qualitativa com brilhantismo: Teresa Maria Frato Huguette (1995), e Maria Cecília de Souza Minayo (1996).
Huguette, no seu trabalho “Pesquisa Qualitativa em Sociologia” (1995), apresenta os fundamentos teóricos e técnicos de metodologias qualitativas na sociologia, criticando os métodos tradicionais, e propondo outros modelos alternativos de análise de dados. Esta autora, sugere as seguintes técnicas para coleta de dados: observação participante, histórias de vidas, pesquisa-ação, história oral, entrevistas com grupos.
São práticas de pesquisa que permitem uma melhor visão do indivíduo, no seu conjunto contextual social e biopsíquico. O que nós consideramos relevantes para as análises dos contextos sociais, a apreensão do mundo empírico e do mundo simbólico.
Faz-se notório que na abordagem temática, não há nenhuma atitude no sentido de desprestigiar, ou desqualificar outros modos de investigação, a exemplo do quantitativo. Até porque, o método quantitativo possui a sua validade intrínseca e relevante na produção de determinadas formas de aferir as realidades sociais, as quais só poderão ser mensuradas por ele. Todavia, o qualitativo, deve também, ser tomado como método de investigação e aferição, tão relevante quanto o quantitativo.
No centro da discussão de Huguette (1995), encontramos as explicações para determinados confrontos entre os modelos: empirismo e racionalismo. A disputa se centraliza no seguinte: quem possui melhor condição de garantir o domínio do real? A razão ou os sentidos?
Sendo este um campo de discussão polêmico e por isso estimulante, não temos condições de entrar nos seus meandros aqui, o que pretendemos retomar em outro momento. O que pretendemos por hora é apenas situar, pincelando, o eixo da discussão desse tema, visto do ponto de vista desta autora.
Outra abordagem sobre pesquisa qualitativa, que vem alcançando cada vez o reconhecimento nos meios acadêmicos é a da autora, já referida acima: Minayo (1996) “O Desafio do Conhecimento - pesquisa qualitativa em saúde”. Neste trabalho encontramos uma estimulante análise sobre os modelos, as técnicas, em pesquisa qualitativa no campo da pesquisa social em saúde. Minayo discute conceitos fundamentais na técnica da objetividade e da subjetividade, no campo da sociologia e da medicina. Analisa o momento de construção do objeto na fase exploratória da pesquisa, e também, aborda as várias modalidades de análises existentes: conceitos fundamentais na operacionalização da pesquisa, definição do objeto de pesquisa, construção de instrumentos de objetos, fases do trabalho de campo, modelos e técnicas de análise, etc.
No campo técnico-metodológico analisa as diversas modalidades existentes de análise qualitativa no trato do material pesquisado, sugerindo formas de fazê-lo com fundamentação numa prática hermenêutico-dialética.
Sem nenhuma pretensão, no sentido de tomar partido como defensora das duas autoras, mas reconhecendo o valor do trabalho de ambas, considerando nesse momento a superficialidade da nossa abordagem, dizemos que consideramos os trabalhos destas duas autoras de grande valia para aferição dos conteúdos empíricos, como forma de propostas para abrir o campo formal da pesquisa qualitativa, enriquecendo ainda mais a produção do conhecimento.
Sendo assim, com o intuito de encontrar métodos, técnicas e modelos adequados, para o tratamento teórico-metodológico da nossa pesquisa, buscaremos percorrer o caminho que melhor se nos apresenta, através da utilização da análise qualitativa, fundamentando nossos procedimentos nos autores apresentados: Huguette e Minayo, visto que elas apontam caminhos pertinentes às aferições de nossas proposições de pesquisa.
Procedimentos Operacionais
Diante da nossa temática, pretendemos conduzir a investigação em dois momentos:
a) No primeiro momento, tomaremos como referência da análise, os filmes - históricos e documentários - produzidos pela imprensa cinematográfica, procurando identificar nas representações dos atores situações similar à realidade vivida pelos portadores. São temas e discussões que pressupomos se materializarão na investigação do campo empírico do cotidiano dos indivíduos portadores do HIV-AIDS.
b) No segundo momento, trabalharemos diretamente com a população de portadores que estejam sendo atendidas nos ambulatórios de Doenças Sexualmente Transmissíveis dos hospitais: Correia Picanço e Hospital das Clínicas da UFPE, e no setor de Atendimento Psicológico da ONG ASAS (Associação de Ação Solidária), que atua com intervenção, através de uma equipe multiprofissional.
A população alvo constará de um universo amostral de 10 indivíduos portadores, que será localizada aleatoriamente, na faixa etária adulta, entendida moldes de PEA (População Economicamente Ativa), na RMR (Região Metropolitana do Recife). Esses atores serão selecionados nos critérios da voluntariedade, sem prerrogativas para alguns fatores, tais como: sexo, tipo de contágio e estágio da doença.
Procedimentos Técnicos
Será o da coleta de dados, através da utilização de entrevistas abertas e semi-estruturadas.
A análise dos dados será feita a partir da análise qualitativa definida nos moldes das autoras. Huguette (1995), e Minayo (1996), onde buscaremos tratar dos dados levantados, utilizando para tanto a técnica de análise de conteúdo.
Para a realização das entrevistas semi-estruturadas, onde os entrevistados falarão fluentemente sobre suas vivências, buscamos por meio de um roteiro de entrevistas previamente elaboradas, cristalizarem os indicadores das nossas variáveis, com a finalidade de responder o seguinte questionamento: como esses indivíduos se definiam antes da infecção? Como se definem agora, depois da doença? Como vêem a AIDS? O que é mais importante agora? O que pensam sobre o seu futuro? Como se percebem no presente? O que é mais importante na vida? Qual a interferência na sua vida afetiva? Qual a maior dificuldade encontrada depois dessa condição de portador?
CRONOGRAMA
Período: Mês e Ano
maio/junho de 1997
julho/agosto/setembro de 1997
janeiro/fevereiro de 1998
março de 1998
Tarefas
- Relação dos filmes que deverão ser tomados para análise na pesquisa.
- Levantamento da Bibliografia disponível referente ao assunto da pesquisa.
- Contatos com outras representações institucionais que trabalham na área do nosso assunto de pesquisa: Hospitais, ONG’s etc.
- Contatos com as coordenações dos locais onde pretendemos desenvolver a pesquisa.
- Contatos informais com os possíveis participantes da pesquisa (população alvo).
- Elaboração do roteiro das entrevistas.
- Início da pesquisa: realizando as entrevistas.
- Catalogação dos trechos dos filmes que serão analisados.
- Leitura e fichamento da bibliografia coletada.
- Transcrição, catalogação do material coletado nas entrevistas.
- Análise do material coletado nos filmes.
- Análise do material coletado nas entrevistas.
- Revisão final de todo o material coletado.
- Início da redação da dissertação.
- Final da redação.
-Revisão da redação.
- Entrega da dissertação para a defesa.
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