quarta-feira, 23 de março de 2011

CONCLUSÃO...

Dissertação de Mestrado: QUANDO NEGATIVO É MELHOR QUE POSITHIVO - Um Estuo Sociológico das Experiências Identitárias de Pessoas vivendo com HIV/AIDS em Recife.

CONCLUSÃO

O grupo que nós investigamos pareceu-nos, em princípio, ser constituído de pessoas cujos comportamentos, freqüentemente, não sofrem a condenação dos seus grupos de pertença: família e amizades. Observamos que isso ocorre porque na experiência da maioria dos entrevistados, esses grupos de pertença participam de suas novas condições de vida. Todavia, essa não é a condição real de todas as pessoas soropositivo ou com AIDS. Muitas delas optam por viver essa experiência em silêncio, ou num contato restrito com as pessoas que lhe são mais íntimas. Ou, então, preferem compartilhar as suas experiências apenas com outras pessoas soropositivas. Assim, visando atender essa questão, vem sendo organizada em todo o território nacional o que se chama de “Rede Positiva”, através da qual se estabelece uma rede de solidariedade entre os soropositivos para veicular informação e prestar ajuda mútua. Nesta mesma intenção também se organizaram as ONGs/AIDS.
Na análise dos aspectos institucionais e organizativos da epidemia de AIDS no Brasil, as conclusões às quais nós chegamos apontam duas direções, em consonância com o que objetivamos na pesquisa. Primeiro, observando o comportamento da sociedade brasileira, vimos que a reação da mesma face à AIDS foi similar ao das outras sociedades mundiais. Isto é, somente a partir das reivindicações dos grupos organizados da sociedade civil, os agentes públicos se sensibilizaram com a questão. O Estado brasileiro demorou a aceitar a AIDS como uma questão prioritária (Parker, et al, 1997). No período do seu surgimento, foi veemente a negação da AIDS como um fenômeno que também tinha sua origem no comportamento da sociedade brasileira. A idéia de um povo pacífico, comportado, “ordeiro”, sem “maus hábitos sexuais” ou outros quaisquer que fossem, e que jamais estaria exposto a doença tão medonha, constituía uma crença ilusória, mas ativa. A AIDS foi construída no imaginário social brasileiro como a doença dos estrangeiros, que chegou até nós, mas que não nos pertencia (Galvão, 1997).
Face ao contexto sociocultural, político e econômico do país, à época do surgimento da AIDS, concluímos que ela foi tratada como uma hóspede indesejada, que chegou aqui no tempo e na hora errada. Visto que o país estava numa fase de redemocratização, não haveria mais espaço político para um problema menor e exótico como a AIDS, segundo nos sugerem os autores que trabalhamos.
Observando-se, por outro lado, as ONGs/AIDS, observamos terem sido elas que, inicialmente, voltaram os olhares para a epidemia de Aids, posicionando-se a favor das pessoas que estavam passando pelos embates dramáticos com a doença. Essas entidades atuaram ao lado de outros grupos organizados, aqui e em outras partes do mundo, como na Europa e nos EUA, (Altman, 1995) para tornar a AIDS um tema institucionalizado. Dentro desse contexto, houve lugar as criações da ONG ASAS e da ONG GESTOS em Recife. Vimos que as atuações destas organizações junto aos portadores são entendidas como recurso institucional de muito valor, pois os atendimentos que elas prestam diferem dos outros recebidos nos hospitais e ambulatórios. Os portadores que entrevistamos foram unânimes em considerar os dois tipos de atendimentos ( ONGs e hospitais) importantes, porém com uma ressalva para um reconhecimento maior a respeito da qualidade daqueles prestados pelas ONGs/Aids.
Quanto aos profissionais de psicologia que trabalham com os portadores nas ONGs/AIDS, percebemos que os mesmos realizam uma intervenção de qualidade na realidade social e emocional dos portadores, o que é provado pelo clima de confiança dominante. Isso foi observado nas reuniões nos grupos de ajuda mútua. Os profissionais entrevistados consideram essas experiências enriquecedoras, geradoras de aprendizados mútuos e de valor inestimável, como podemos observar nos depoimentos seguintes:
Lúcia Soares: “Como é pra eu trabalhar com eles? (risos) É..., por um lado é muito desgastante, porque você trabalha com resgates importantes, como a auto-estima, com o fortalecimento. É um trabalho de apoio que muitas e muitas vezes se depara com as dificuldades do dia a dia...Existe um desgaste emocional muito grande, e por outro lado é muito positivo. Pessoas desgastadas conseguem levantar a auto-estima, a moral, sair da solidão, e se motivarem...Tem pessoas em quem eu posso me escutar. Isso reflete em que essas pessoas podem se olhar a elas mesmas...É isso!”

Glaudston Lima: “...Tem feito com que eu repense uma série de coisas: preconceitos que você tem..., você é socializado com uma série de padrões e inevitavelmente tem alguns preconceitos e tal, e tal. E você revê isso, você vê que há outras possibilidades de construção da subjetividade...poder ter uma maior sensibilização para a diferença mesmo, né? Ter um contato com a diferença de forma mais humana, mais ética...Quando você se defronta com essa dimensão do excluído e passa também a refletir de forma mais ampla os modos como a sociedade reproduz essa exclusão e passa a ficar mais sensível em relação a isso... É uma experiência muito gratificante que exige que você se reconstrua”.

Everton Marinho: “Especificamente, trabalhar com a população soropositiva é uma coisa nova. Uma experiência nova. Existem questões, como a marginalização, as dificuldades sócio-econômicas, que são pontos que também a gente consegue identificar nesse trabalho com os portadores... É muito interessante trabalhar o HIV por conta de muitas questões que a doença mobiliza: discussões da sexualidade, do relacionamento entre as pessoas, né? Entre nós e as pessoas..., a questão comportamental. Qual é a minha postura? Principalmente na discussão do comportamento sexual das pessoas?...A gente faz ligações com as pessoas...Saber qual é a tua participação e entender também a participação do coletivo, do conjunto.... Existe sempre a possibilidade de saber mais, de se conhecer mais. É a ética do respeito pelo outro, e é a própria tomada de consciência de você mesmo, como pessoa, inserida, interagindo no mundo, e com eles”.

Na análise das hipóteses levantadas, a principal delas, a de que a condição de portador do HIV/Aids desencadeia um processo de redefinição da identidade, levou-nos a conclusão de que, primeiro, a identidade se fragiliza substancialmente, pondo as pessoas num estado deplorável de crise existencial. Nesse contexto, o confronto pessoal entre a identidade já existente e o sentimento de urgência em abandoná-la, migrando para outras instâncias, é doloroso. Tal processo pode ser associado ao renascimento do ideal do eu. Um eu minimizado, diminuído, individualizado, que busca sobreviver a qualquer custo, superando o eu soberano (Lasch, 1990). Essa redefinição identitária passa a ser um projeto de sobrevivência e de negociações, a partir das quais algumas novas rotinas se criam: o uso do coquetel (para manter a saúde e prolongar o tempo da vida); a relação grupal nas ONGs; os planos e projetos para o futuro (construir casas, viajar, ajudar ao próximo, cuidar da família e dos filhos); investir na esperança de dias melhores, de uma vacina que trará a cura para a AIDS aparece como um tópico central no dilema vida/morte.
Consideramos toda essa conduta como atitudes de barganha, de negociações com o vírus já que a predominância no grupo investigado é de pessoas que nutrem a expectativa de maior tempo de vida e de distanciamento da morte iminente.
Nas hipóteses complementares, chegamos às seguintes conclusões: na primeira observamos que a condição do gênero, especialmente na perspectiva feminina, influi nas prioridades eleitas para a vida em família. Já na perspectiva masculina, os entrevistados elegeram maiores prioridades em pensar novos projetos para a vida pessoal, o que não quer dizer que os mesmos não estejam preocupados com suas famílias, como demonstramos no quadro de referência número três. Aparece como relevante nessa hipótese a questão da sexualidade. Com apenas uma exceção, todos os entrevistados foram concordes em que as suas vidas sexuais entraram em crise, o que realça a estreita relação entre sexo e AIDS. Isto os leva a repensar a sexualidade como um significante central na reorganização das identidades. O sentido dessa alteração na vida sexual nos remete a duas outras questões também relevantes. A primeira diz respeito à questão de que as maiorias dos entrevistados se infectaram na relação sexual. A segunda nos remete ao fato de que os homens e as mulheres vêem o sexo após o HIV do mesmo modo. Segundo os entrevistados, tanto para os homens quanto para as mulheres, não há diferença nos efeitos causados pelo HIV/AIDS nas práticas biológica, psicológica e sexual da pessoa infectada. Isto evidencia que a crise na identidade de gênero, independente da categoria representada, é a mesma.
Na segunda hipótese, nas questões do estigma e da exclusão, predomina o trabalho como objeto de identificação social. Nesse indicador, chama a atenção o fato desse pequeno recorte de pessoas entrevistadas se caracterizar pela mesma faixa etária de pessoas infectadas, que é a de 20-49 anos (faixa de idade considerada plena para o trabalho), predominante no Brasil e em todo o mundo.
No que concerne à questão do estigma, observamos que o mesmo é predominante na população homossexual, nas prostitutas e nos usuários de drogas injetáveis tratados como grupos de comportamentos desviantes. Por outro lado, onde esperávamos comprovar uma exclusão mais significativa, a da relação médico/paciente, ela não se confirmou como hipótese. Pelo menos no que dizem respeito à representação do grupo entrevistado, as respostas apontam em geral, para a negação dos preconceitos e discriminações. Os que afirmaram que a relação médico/paciente não e discriminatória aparecem em número superior aos que admitem os preconceitos.
Consideramos essa negação da hipótese sobre a discriminação importante porque aponta para a existência de laços de solidariedade que resistem aos efeitos desagregadores da exclusão. Os portadores que dizem estar satisfeitos com a atitude do médico demonstram preferir ver este como um amigo, do que como alguém que lhes é antagônico. Sendo o médico uma representação simbólica da cura, de grande significado para o portador, sua presença amiga aparece como relevante no tratamento. Todavia, outras pesquisas, demonstram que ainda persiste esse tipo de comportamento excludente dos médicos para com os pacientes da AIDS, o que sugere a necessidade de aprofundamento do assunto (Camargo Jr., 1994, e Mello Filho, 1992). De todo modo, observamos que os portadores entrevistados preferem ver o médico como seu aliado do que como seu opositor. Porque o médico simboliza para esses portadores a possibilidade, senão de cura, ao menos de uma duração maior da vida.
A presença da AIDS há quase duas décadas, vem forçando a sociedade a estabelecer certo convívio. Convívio amistoso, mas imposto. Assim, a sociedade é obrigada a promover reajustes socioculturais e, no limite, a instaurar uma nova ética de solidariedade que aparece nas relações de amizade, de afetos, de família e de trabalho.
A AIDS, pela complexidade de aspectos que a envolve, demandará sempre estudos multidisciplinares. Os problemas que ela comporta representam desafios apresentados sempre em ordens diferenciadas de tamanho e importância. Mas, esses problemas não são isolados. Eles sempre surgem associados a outras questões, estimulando a que sejam tratados e analisados numa ótica multidisciplinar e complexa. Como diz Ana Camargo: “A AIDS na verdade, nos expõe as entranhas da nossa sociedade. São milhares e milhares de homens e mulheres que não sabem viver e nunca aprenderam, nem descobriram o significado dos afetos, mas diante da morte esta descoberta se faz. Apenas consumiram e foram consumidos por uma sociedade, onde tudo parece ter preço e dono” (Camargo, 1994, p. 118).
Não temos este trabalho como concluído, porque a AIDS é uma experiência sociológica nova. É uma “gestalt” que ainda está aberta, e ao que tudo indica, ainda deverá permanecer assim por um bom tempo. A cada dia que se passa não sabemos quantas pessoas mudaram a identidade de soronegativas para soropositivas, ou até vieram a morrer de AIDS. Isto nos leva a concluir sobre a importância de se continuar estudando e pesquisando sobre o tema da AIDS. Os momentos de epidemia são, enfim, desafios para que as solidariedades sejam pensadas não apenas como objeto teórico, mas, sobretudo, como práticas inovadoras de vida.
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MIRIAM FIALHO DA SILVA.
ORIENTADOR: PROFESSOR PAULO HENRIQUE N. MARTINS

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