quinta-feira, 28 de março de 2013

BELO POEMA





Grandes São os Desertos, e Tudo é Deserto.  

Grandes são os desertos, e tudo é deserto.
Não são algumas toneladas de pedras ou tijolos ao alto
Que disfarçam o solo, o tal solo que é tudo.
Grandes são os desertos e as almas desertas e grandes
Desertas porque não passa por elas senão elas mesmas,
Grandes porque de ali se vê tudo, e tudo morreu.
Grandes são os desertos, minha alma!
Grandes são os desertos.
Não tirei bilhete para a vida,
Errei a porta do sentimento,



Não houve vontade ou ocasião que eu não perdesse.
Hoje não me resta, em vésperas de viagem,
Com a mala aberta esperando a arrumação adiada,
Sentado na cadeira em companhia com as camisas que não cabem,
Hoje não me resta (à parte o incômodo de estar assim sentado)
Senão saber isto:
 
Grandes são os desertos, e tudo é deserto.
Grande é a vida, e não vale a pena haver vida,
Arrumo melhor a mala com os olhos de pensar em arrumar
Que com arrumação das mãos factícias (e creio que digo bem)
 
Acendo o cigarro para adiar a viagem,
Para adiar todas as viagens.
Para adiar o universo inteiro.
Volta amanhã, realidade!
 
Basta por hoje, gentes!
Adia-te, presente absoluto!
Mais vale não ser que ser assim.
Comprem chocolates à criança a quem sucedi por erro,
E tirem a tabuleta porque amanhã é infinito.
 
Mas tenho que arrumar mala,
Tenho por força que arrumar a mala,
A mala.

Não posso levar as camisas na hipótese e a mala na razão.
Sim, toda a vida tenho tido que arrumar a mala.
Mas também, toda a vida, tenho ficado sentado sobre o canto das camisas empilhadas,
A ruminar, como um boi que não chegou a Ápis, destino.

Tenho que arrumar a mala de ser.
Tenho que existir a arrumar malas.
A cinza do cigarro cai sobre a camisa de cima do monte.
Olho para o lado, verifico que estou a dormir.
Sei só que tenho que arrumar a mala,
E que os desertos são grandes e tudo é deserto,
E qualquer parábola a respeito disto, mas dessa é que já me esqueci.

Ergo-me de repente todos os Césares.
Vou definitivamente arrumar a mala.
Arre, hei de arrumá-la e fechá-la;
Hei de vê-la levar de aqui,
Hei de existir independentemente dela.

Grandes são os desertos e tudo é deserto,
Salvo erro, naturalmente.
Pobre da alma humana com oásis só no deserto ao lado!

Mais vale arrumar a mala.
Fim.

Álvaro de Campos, in "Poemas"
Heterónimo de Fernando Pessoa

quarta-feira, 27 de março de 2013

CARTA ABERTA




CARTA ABERTA AOS GESTORES SOBRE AVALIAÇÃO DA ANAIDS DA RESPOSTA BRASILEIRO AO HIV/AIDS
MARÇO DE 2013

A Articulação Nacional de Luta contra a AIDS (ANAIDS), colegiado que reúne os fóruns estaduais e as representações do movimento de luta contra a AIDS no Brasil, reunidos em Fortaleza (CE), após avaliar a resposta brasileira ao HIV/AIDS, vem a público divulgar a seguinte carta aos gestores da saúde pública nos níveis Federal, Estaduais e Municipais.

- Existe uma crise no enfrentamento da epidemia de AIDS no Brasil, que piora a cada dia, ficando evidente que a questão saiu da pauta de prioridades governamentais, infelizmente num momento em que se pauperiza e atinge com mais velocidade populações vulneráveis.

- As ações de assistência estão insatisfatórias, há clara falta de profissionais de saúde o que se reflete no atendimento tardio das consultas e na impossibilidade de atendimento de casos novos. Da mesma forma, não se encontram soluções para quem tem necessidade de cirurgias reparadoras.

- As ações de prevenção se mantêm estacionadas em realidades ultrapassadas, há urgência de se repensar novas práticas e estratégias como a efetiva implementação de novas tecnologias como a PEP (profilaxia pós-exposição sexual) que não tem acontecido, bem como mais discussão sobre a PrEP (profilaxia pré exposição). Também a carência de insumos de prevenção, sobretudo o destinado à população feminina, é uma difícil realidade em vários estados, como também o comprometimento de estados e municípios na aquisição destes insumos. Há necessidade de repensar a logística de distribuição a partir da esfera federal até municipal.

- Se faz urgente um engajamento dos dirigentes locais no apoio a ampliação da oferta de testagens, mas também no aumento da capacidade de atender a demandas daí oriundas de forma satisfatória, não se pode aceitar a realidade de assistência tardia o que temos verificado cotidianamente.

- A plena implementação da resolução 462/12 do CNS e o engajamento do Departamento Nacional de DST/AIDS e HV neste debate (ao contrário do que tem acontecido), neste debate é fundamental para a garantia de continuidade destas ações acima citadas.

- É preciso retomar o debate que ficou adormecido junto a Secretaria de Vigilância em Saúde, do Ministério da Saúde, bem como seus desdobramentos sobre o financiamento das ações da Sociedade Civil diante da diminuição de financiadores e da demanda que continua crescente, aja visto que já foram feitas varias discussões e nenhum resultado até o momento apresentado, e com isso enfraquecendo o trabalho do controle social.

- O debate sobre financiamento as ações de HIV/AIDS no Brasil deve ser levado para o Congresso Nacional, a fim de se garantir a ampliação necessária e o comprometimento estatal a esta realidade.

- A falta de implementação de um número maior de pesquisas, que descortinem a realidade atual da epidemia e que apontem caminhos de enfrentamento é uma urgência, a fim de entendermos o alcance e os reflexos da AIDS em nosso país, como por exemplo, a qualidade de atendimento nos serviços especializados.

Por fim os ativistas reunidos, representantes de mais de 500 organizações não governamentais e movimentos sociais nos 27 estados, avaliam que a atual gestão federal tem deixado muito a desejar em termos de comprometimento, respostas efetivas, perspectivas inovadoras e, principalmente, diálogo efetivo com a sociedade civil. Tal realidade se reflete em muitas administrações Estaduais e os Municipais onde as amarras administrativas, o preconceito e a indiferença têm aumentado e gerado mais exclusões e mortes prematuras.

Atentos a esta realidade não cansaremos de denunciar os descasos e de nos mobilizar na luta pela implantação de um SUS de qualidade e voltado para as realidades vividas pelas pessoas que vivem e convivem com HIV/AIDS.

Fortaleza, 07 de Março de 2013.