Capítulo 1º da Minha dissertação do Mestrado
Neste capítulo, enfocaremos três recortes que consideramos pertinentes discutir e que chamamos, aqui, de registros contemporâneos da Aids. Os aspectos enfocados são: a questão etiológica, a questão social e institucional, e a discussão comportamental da população alcançada pelo HIV/Aids. Observamos que existe uma correlação importante entre estes três recortes. Somente através de um conhecimento prévio desses fatores, o público leitor terá uma visão mais abrangente do que vem a ser a epidemia da Aids, dos modos como ela se estabeleceu no mundo, e de como as pessoas foram flagradas por um diagnóstico de soropositividade, em suas vivências cotidianas, atingindo hábitos, valores, crenças e práticas sociais.
O capítulo se divide em três seções: os registros etiológicos do HIV/Aids, os registros sociais e institucionais, e os registros simbólicos e identitários. Na primeira seção, definiremos sucintamente a etiologia da Aids, explicando os termos usados pela ciência da medicina para definir a síndrome, os modos como a mesma pode ser contraída e evitada, os recursos científicos para diagnosticar a patologia e os tratamentos para manter a doença sobre controle. Na segunda seção, faremos uma análise de alguns aspectos concernentes a instauração da Aids no mundo, visto que a consideramos como um desdobramento da sociedade moderna, tanto pelos modos como se instituiu, quanto pelas formas diversificadas de ser adquirida. Faremos ainda as analogias entre a Aids e outras epidemias que assolaram o mundo, como a tuberculose e a sífilis, mostrando em que são análogas e em que se diferenciam. Na terceira seção, faremos a abordagem teórica da questão da identidade, analisando os conceitos de autores que discutem o tema ao longo dos últimos anos, buscando fazer o aporte entre a questão teórica e o nosso objeto prático.
1.1- Registros Etiológicos do HIV/Aids
A Aids configura-se como um grande flagrante na sociedade moderna. Seu advento ressalta questões polêmicas de teores diversos, denunciadoras do modus vivendi das populações e de suas formas de organização social. Surgindo numa realidade histórica em que as grandes epidemias são dadas como erradicadas, pelo menos nos países desenvolvidos, a Aids pôs em estado de inteira perplexidade toda a sociedade global, atingindo as rotinas de instituições como o Estado, a Ciência, a Medicina, a Família, a Religião, e o Trabalho.
No trato desta temática, faz-se necessário apreender as particularidades inerentes a epidemia que a tornam diferente das outras que assolaram o mundo como: Peste Negra, Gripe Espanhola, Tuberculose, e Sífilis. Essas particularidades estão relacionadas àquelas práticas de vida dos indivíduos, identificadas como anormais por estarem dissociadas dos padrões da moral social convencional. Com a Aids, o estigma da “anormalidade” engendrou o surgimento de práticas “clandestinas”, de tentativas de se furtar à vigilância das normas sociais.
A Aids é formada por um conjunto complexo de fatores o que, até hoje, faz com que sua presença não seja compreendida por um grande contingente da população. As dificuldades das ciências médicas em diagnosticar corretamente a etiologia da virose – que se pressupunha, à época das primeiras investigações, ser a causadora de muitos óbitos – justifica a compreensão confusa que a população tem sobre o assunto. As primeiras notícias sobre a Aids chegam dos Estados Unidos, em 1981, através de um órgão governamental americano: Center for Disease Control. (CDC) . Cidades como a Califórnia e Nova Iorque atestavam mortes de homossexuais masculinos, jovens e adultos, que ocorriam de forma inusitada, combinando raros tipos de canceres com pneumonias comuns. Esses casos eram descritos como estados de imunodeficiência, ou seja, uma diminuição dos recursos orgânicos tradicionalmente requisitados para manter o corpo imune às infecções (Camargo JR., 1994). A Aids estabeleceu entre nós um ritmo de crescimento surpreendente, desafiando as ciências médicas, que até hoje ainda não conseguiram descobrir a sua causa, ou, pelo menos, o modo como a enfermidade surgiu. Existem porém muitas especulações a este respeito, como a de ser uma doença originada dos homossexuais masculinos nos EUA, cognominada de “peste gay”. Esta especulação espalhou-se à época da sua notificação para o mundo, mas não explica absolutamente a sua origem.
O percurso da epidemia fez-se com muita rapidez, de forma que num período de dez anos, de acordo com Luc Montagnier (1995) , ela já estava sendo identificada em todo o mundo. Sua diagnosticação se deu na seguinte cronologia: em 1981, a doença foi identificada; em 1983, o agente vetor foi isolado pela primeira vez; em 1984, a demonstração do papel causal desse agente na Aids foi aceita por toda a comunidade científica; em 1985, surgiram os primeiros anúncios de detecção confirmando-se as suspeitas de que a ciência não possuía nenhuma pista de como descobrir as origens e as causas de uma doença que se apresentava de modo tão grave. A rapidez desse avanço gerou a crença e a esperança de que a luta contra a Aids seria “uma guerra relâmpago” a ser rapidamente ganha (Montagnier, 1995, p 9).
A conclusão à qual a medicina chegou foi que a Aids é uma doença de origem viral. A sua gravidade está no fato do agente infeccioso ser um retrovírus que afeta sobretudo as células do sistema imunitário. Por ser uma doença crônica, sua evolução é sempre lenta, o que faz com que a mesma passe de um estágio a outro de contaminação, até o momento próprio em que o paciente desenvolve os sintomas clínicos, o que pode ocorrer num período de até dez anos. Nesse intervalo, a pessoa infectada fica apenas como um “soropositivo.” Isto vem se dando com mais freqüência nessa segunda década de Aids com o uso do coquetel.
Na busca de respostas para explicar o surgimento da epidemia de Aids, as especialidades médicas procuravam encontrar respostas para certos questionamentos: O que é a Aids? É uma doença? Que tipo de doença? É uma doença nova? Como se pega? As respostas foram dadas parcialmente.
Segundo Montagnier (op. cit. p. 91), a Aids é uma doença que se apresenta em duas dimensões: é uma ocorrência nova, mas que tem uma história antiga. Estudos realizados retrospectivamente com amostras de sangue colhidas a partir do anos 60, assim como certas descrições clínicas, indicam que o vírus da Aids já estava presente no homem muito antes de se falar da mesma. Em princípio, é uma doença sem sintomas clínicos próprios, visto que se manifesta através de outras patologias chamadas de oportunistas tais como: tuberculose, câncer de pele, hepatite, e a toxoplasmose. Essas doenças se definiam ou por sintomatologia ou por sua estrutura anatômica (Montagnier, op. cit.).
A epidemia da Aids é uma doença nova que foi diagnosticada no princípio dos anos 80 pelos franceses e norte-americanos. O termo "SIDA" ou “AIDS” é uma sigla originada do nome inglês: “Acquired Immune Deficiency Síndrome”, que se traduz por “Síndrome da Imunodeficiência Adquirida” . A sigla Aids se constitui num conjunto de termos, onde cada um deles possui o seu conceito próprio dentro da ciência médica. São eles: Síndrome, Imunodeficiência e Adquirida.
Logo, a Aids é uma doença imunológica resultante de uma infecção por um vírus que é transmissível em circunstâncias determinadas de troca íntima de fluidos dos corpos. Esta troca pode se dar através do ato sexual, da transfusão de sangue, da gestação, do nascimento, da amamentação ou acidentalmente.
A infecção é detectada através de testes laboratoriais feitos no sangue, a partir dos quais o vírus é isolado com o uso de várias técnicas . Após a infecção pelo HIV, decorrem várias etapas bem definidas que são: a primo-infecção, a fase silenciosa, e a doença clínica. (Montagnier, op. cit. p 80).
O HIV é um retrovírus, o que significa que a sua forma de vida é simples. Tem curta duração de vida, morrendo rapidamente se for mantido por quinze minutos, mais ou menos, numa temperatura de 50o graus centígrados. Morre também ao contato de alguns minutos com vapores de formol, hipocloreto de sódio ou outros equivalentes. (Lepargneur, 1987, Montagnier, op. cit.). As formas de contaminação se dão através da troca de líquidos do corpo, nas relações sexuais, no uso de seringas descartáveis (nos usuários de drogas intravenosas), no aleitamento materno, na transfusão de sangue e seus hemoderivados (no caso de sangue não tratado), e no uso de perfuro-cortante (forma acidental). A sigla HIV significa Human Imunedeficiency Vírus (Vírus da Imunodeficiência Humana). Trata-se de um vírus que possui características muito particulares e por isso pode passar, e passa, desapercebido por muito tempo no corpo das pessoas. Ou, então, o faz num período de nove meses até seis anos. Infecta de modo lento, não apresentando sintomas de contágio.
O sistema imunitário é o alvo do assalto do HIV. O vírus é um parasita que invade e se apropria, de preferência, da máquina genética de uma célula crítica do sistema de defesa humano: a chamada T auxiliadora, que tem como função incentivar as células que produzem os anticorpos e ajudam a controlar as infecções por fungos e bactérias. Para entrar na T auxiliar, o vírus HIV utiliza proteínas que ficam na superfície dessa célula, em particular a chamada CD4 (Lepargneur,1987, Montagnier, 1995). Esse vírus destrói o linfócito T-4, que é a chave do sistema imunológico, causando danos profundos à saúde dos atingidos .
As formas de tratamentos para a Aids constam de uma combinação de medicamentos, o chamado Coquetel, que passou a ser ministrado a partir da segunda metade da década de 90 . Atualmente, com o uso do coquetel que é feito da combinação de medicamentos (que é ordenada de acordo com a sintomatologia de cada paciente, tomando-se como referência principal a diminuição do CD4 e a elevação da carga viral), o quadro se reconfigurou: o número de internamentos hospitalar e de mortes vem diminuindo consideravelmente, e o tempo de vida das pessoas tem aumentado muito mais .
Na Aids se distinguem dois estágios diferenciados: um, de “soropositivo assintomático”, quando a pessoa é apenas um portador do vírus sem sintomas da infeção; outro estágio é o de “soropositivo sintomático”, quando a pessoa já está com manifestações das doenças oportunistas. Este é um momento delicado nas vidas das pessoas, visto que elas se confrontam com os limites de suas próprias existências, de mudanças de suas vidas íntimas e de seus referenciais sociais.
Enfim, a Aids é uma doença longa, contagiosa e complexa, que desafia as diversas realidades socioculturais, as condições de vidas das populações e a eficácia das ciências médicas no trato de certas epidemias. Esta flagrou as sociedades e os indivíduos nas suas crenças mais ocultas, revelando as fragilidades de suas subjetividades.
2- Registros Sociais e Institucionais
Neste recorte abordamos alguns aspectos institucionais da epidemia de Aids, tentando explicá-la como um desdobramento da sociedade moderna e dos modos como esta se instituiu historicamente. Não abarcamos aqui toda a história social da Aids, visto que a mesma se instaura de formas diversas, em campos culturais diferentes, e em realidades sociais antagônicas. Apenas apontamos alguns aspectos da sua trajetória que consideramos relevantes para facilitar a compreensão dos modos como se inscreveu institucionalmente e foi revelada no mundo inteiro. Esses aspectos dizem respeito às configurações assumidas pela Aids tanto ao ser reconhecida como uma epidemia, depois uma pandemia, como pelo número de pessoas contaminadas nessas quase duas décadas de suas expansão. As políticas sociais dos governos para tratamento e prevenção oficializaram essas configurações.
A Aids é um fenômeno que se estabeleceu como uma instituição sociológica, revelando características ajustáveis às preocupações de autores com o funcionamento das instituições modernas (E. Durkheim, 1985, P. Berger e T. Luchman 1978, e C. Castoriadis 1995. Ela possui uma tipificação própria, quando se define segundo os conceitos etiológicos da ciência médica: envolve os outros segmentos da sociedade na sua trajetória, impõe normas de conduta para ser reconhecida socialmente e força a redefinição do campo simbólico e identitário dos indivíduos.
A Aids se instaurou no mundo sob mesmas circunstâncias históricas. Em todos os grupos afetados os efeitos culturais são similares independentemente de raça, cor, cultura e classe social. Apesar de vivermos dentro de uma realidade mundial de condição sociocultural, política e econômica expressivamente desiguais, submetidos a diferenciadas oportunidades de vida, no que se refere ao fenômeno da Aids esses condições mudam: todos se tornam iguais quando se trata de encarar a perspectiva da morte. Em qualquer recanto do globo onde a Aids tenha-se inserido, a experiência de vivenciá-la será sempre a mesma. Todavia, a Aids deverá ser tratada sob várias óticas, com os recortes ou as correlações que se façam necessárias para que a explicação da sua história social não seja reduzida a chavões equivocados (Camargo, 1994).
Ver a Aids numa visão globalizada é significativo para se pensar o futuro do vivente humano nos âmbitos local, regional, nacional e internacional. A Aids foi definida como o mal do século, uma doença que põe o homem num confronto imediato com sua finitude, com a idéia da morte iminente. Diante de tal realidade, o mundo imaginário funciona exacerbadamente, as instâncias identitárias são postas em xeque, elas são fragilizadas ou até mesmo fragmentadas, mesmo que seja num período de tempo provisório. Assim, a Aids suscita os medos, as incertezas, a dor, a fé, a culpa, a esperança, pelos efeitos causados no universo imaginário das pessoas. Montagnier ressalta o lado simbólico das epidemias para a representação da sociedade:
“As grandes epidemias não se caracterizam somente pelo número de doentes e de mortos. Uma doença se torna o mal do século porque cristaliza, porque simboliza mesmo, a maneira como uma sociedade vive coletivamente o medo e a morte. Nesse sentido, a doença importa tanto por seus efeitos imaginários quanto por seus efeitos reais” ( Montagnier. op. cit. p187).
Essa dimensão simbólica, segundo ele, é particularmente presente no caso da Aids.
“A Aids não escapa a essa regra: muito depressa saiu do mundo médico para pôr em questão os próprios fundamentos da nossa sociedade. Presente em nossa vida cotidiana, ela nos obriga a refletir e, eventualmente, a modificar nossos comportamentos. Nenhuma doença na época contemporânea nos incitou tanto a pôr em questão nossa identidade, nossos valores, nosso senso de tolerância e de responsabilidade” (Montagnier, op. cit. p 187).
Vivemos, hoje, a segunda década da Aids, e o quadro que se nos mostra não é nada animador, apesar do coquetel e das vacinas em teste. De todo modo deve-se registrar que as estatísticas atuais são mais precisas, o que permite avaliações mais objetivas sobre o desenvolvimento da epidemia.
Os registros sócio-geográficos da Aids no mundo começaram a ser feitos pela OMS (Organização Mundial de Saúde), com base nas notificações feitas pelos países. De início, não funcionou a contento. Havia incertezas quanto aos dados produzidos nas pesquisas sobre o número de pessoas infectadas. Questionava-se qual seria a predominância populacional: se era de homens ou de mulheres, e se esta relação se diferençavam de país à país. Essa dificuldade se dava por conta da falta de recursos técnicos, financeiros e metodológicos para elaboração das pesquisas, bem como pelo fato de alguns países se manterem alheios ao fenômeno: não pesquisando, não comunicando os seus índices de contaminação à OMS, nem elaborando estratégias de atendimento à população contaminada (Mann, et al 1993) .
No começo da década de 90, houve um aperfeiçoamento dos dados já se podendo formar um panorama mais aproximado da doença no mundo. Para tanto, se contou com as notificações de quase todos os países alcançados pela infecção (Mann, et al, 1993). O primeiro panorama traçado de uma geografia da Aids, no mundo, constou de uma notificação de cento e sessenta e quatro países alcançados pela infecção. A África notificou 52 países, as Américas, 45, a Europa, 28, a Ásia 26, e a Oceania, 11. As notificações feitas à OMS nessa primeira década da Aids foram as seguintes, de acordo com Mann, et al (1993). A África Subsaariana notificou um total de 144.527 casos de Aids (fazendo um percentual de 30% do total mundial) ficando apenas um país africano, à época, sem comunicar a evolução do caso, o Seychelles. As Américas vieram em seguida com um total de 268.477 casos (representando uma porcentagem de 55% do total global). Todos os países das Américas relataram casos de Aids com os Estados Unidos liderando o grupo. Depois, temos o continente europeu que notificou 66.126 casos (representando uma porcentagem de 14% do total global). A Albânia, à época não notificou nenhum caso. Na Europa, o maior número de casos notificados vieram da Europa-Ocidental: França, Itália, Espanha, Alemanha, Reino-Unido e Suíça.
Com uma década de Aids no mundo, os registros socio-geográficos de notificações de ocorrências se apresentaram expressivos e preocupantes. A visão panorâmica da primeira década de Aids no mundo, a de oitenta, apontava para a gravidade do que poderia vir a ser a trajetória da epidemia. Naquele período, ela já foi notificada como uma pandemia, visto que se tornara global (Montagnier, 1995). Esse fato se comprovou no início da década de 90, visto que os resultados obtidos pela OMS demonstraram um aumento significativo no número de casos notificados.
No início da segunda década da pandemia, mais precisamente em 1992, o quadro de pessoas infectadas assumiu outras proporções, passando a 12,9 milhões, sendo 4,7 de milhões de mulheres, 7,1 milhões de homens e 1,1 milhão de crianças. Cerca de um quinto (2,7 milhões ou 21%) desenvolveu o sintoma da Aids; e destas, mais de 90% (aproximadamente 2,5 milhões) morreram.
Nessa segunda década, a elevação do nível de pessoas alcançadas pela Aids é bastante significativa, superando consideravelmente a primeira década. No final de 1998, o quadro de pessoas alcançadas pela Aids se amplia, segundo as novas estimativas da União Nacional de Programa em HIV/AIDS (UNAIDS) e da OMS (Organização Mundial de Saúde). No Sumário Global da Epidemia, o número de pessoas vivendo com HIV/Aids é de 33.4 milhões no mundo, sendo 32.2 milhões de adultos, e 1.2 milhão de crianças menores de 15 anos. O número de pessoas mortas é de 2.5 milhões no mundo, sendo 2.0 milhões, de adultos, e 510 mil, de crianças menores de 15 anos de idade. O total de pessoas que morreram nessas duas décadas com a epidemia de Aids é de 13.9 milhões no mundo, sendo 10.7 milhões, de adultos, e 3,2 milhões, de crianças com menos de 15 anos de idade. O total de novas pessoas infectadas com o HIV/Aids em 1998 é de 5.8 milhões de pessoas, sendo 5.2 milhões, de adultos e 590.000, de crianças com menos de 15 anos de idade. Aproximando-nos do final dessa segunda década, o quadro que se apresenta é outro, com um índice de maior gravidade. Cresce a preocupação do mundo quanto às expectativas futuras da epidemia: seja quanto à escala ascendente de pessoas infectadas pelo HIV, seja com relação às de pessoas doentes e morrendo de Aids.
Face à complexidade trazida pela Aids, uma questão se nos impõe: há um fato social e global que propiciou o surgimento da Aids, envolvendo pessoas de cor, raça, credo, condição social e intelectual num mesmo contexto? (Ferreira 1994). Não se tem ainda uma resposta certa para tal indagação. Alguns estudiosos no assunto da epidemia como L. Montagnier (1995), Ferreira (1994), G. Rotello (1997), L. Chaitow e S. Martin (1988), são concordes no pensamento de que a organização da sociedade moderna em classes sociais bastante desiguais, contribuíram para o assustador volume de pessoas vivendo em condições de pobreza e miséria. Essas condições adversas acarretaram sérios problemas no funcionamento das sociedades, principalmente nos grandes centros urbanos, provocando a degradação das condições de saúde e do meio ambiente.
A fragmentação do mundo moderno impulsionou a criação de grupos marginais e de excluídos, degradou as redes sociais e as estruturas psicológicas gerando a violência e o crime nas proporções atuais. Outros fatores que podem explicar esse advento da Aids são determinados pelas novas migrações e incrementos do turismo mundial, nas últimas décadas. As rotas turísticas de classes médias, associadas aos deslocamentos populacionais, forçaram reordenamentos estruturais da sociedade moderna, com a quebra dos vínculos tradicionais de famílias, amigos, clãs, entre outros. Esta reconfiguração da vida social urbana impôs mudanças sociais significativas nas culturas humanas, estabelecendo a criação de novos hábitos e costumes que contrastam com os anteriormente estabelecidos e vividos. Foi a partir da instabilidade gerada por essas mudanças que o ambiente se tornou propício para o surgimento da Aids, já que a fragmentação das instituições rebate sobre a saúde psíquica e afetiva dos indivíduos.
Montagnier (1995) referenda essa análise. Para ele, a origem da epidemia residiria nas transformações de nossas sociedades porque:
“...o vírus da Aids não mudou, mas a população se tornou mais sensível ....os fenômenos sociais ligados às misturas de populações permitiram sua rápida propagação por via sexual. Nos países ocidentais, pode-se mencionar a liberação sexual que acompanhou a difusão da contracepção hormonal e o reconhecimento da homossexualidade; nos países de Terceiro Mundo, a ruptura das comunidades tradicionais, associada ao desenvolvimento econômico e social” (Montagnier, 1995, p 97).
Segundo este autor, a junção de todos esses fatores, de ordem cultural e social pode ter sido uma das causas da difusão da epidemia de Aids em todo o mundo. As mudanças sociais não ocorrem isoladamente. Elas começaram em locais específicos mas se estenderam por todas as sociedades globais numa certa escala de tempo.
O modo como foi interpretada no início, induziu, porém, a que se associasse a Aids com os “grupos de risco”. A existência do turismo sexual, estimulado principalmente pelos gays norte-americanos, em várias localidades do mundo, contribui para difundir esta imagem. Mas não apenas isso. Outros fatos aconteciam, à época, que também devem ser lembrados: o consumo das drogas injetáveis, a prática homo/bissexual e a prostituição feminina. Todas essas eram consideradas como práticas de vida causadoras da fragilização na saúde humana.
Ferreira (1994) ainda aponta para a questão dos modos de vida nas sociedades modernas serem geradores de estados imunodepressores. Isto reforça as afirmativas de outros autores de que a Aids, ao se instalar na vida das pessoas, o faz com rapidez, causando mais danos à saúde, quando encontra corpos estressados. Nessa perspectiva, a Aids surge como conseqüência e não causa de problemas, existindo evidências de que o comportamento dos indivíduos pode influenciar a função imunológica do organismo – para mais ou para menos. Rotello (1997) na mesma direção, diz que o fenômeno cultural é definitivo no surgimento da Aids. Tomando como referência a situação social da África, lembra que o período da colonização causou choques sociais profundos na vida da sociedade africana, com os agricultores sendo deslocados em massa do campo para as cidades. Por conta dessa migração, as aldeias cresceram como “cogumelos” . As auto-estradas – que anteriormente eram só florestas – ligando antigos vizinhos que mal sabiam das existências uns dos outros, constituíram um fator propiciador do surgimento da epidemia. A prostituição das esposas que ficaram nas aldeias africanas, forçadas pelas circunstâncias financeiras e pela necessidade de complementação de renda familiar, também aparece como causa significante. O autor diz que em tudo o que envolve a discussão do surgimento da epidemia da Aids uma coisa parece ser muito clara, pois:
“Por tempo que o HIV já se encontre nos humanos, há décadas ou séculos, o vírus não encontrou meios de se transformar em epidemia na maior parte do mundo até ocorrer uma vasta liberalização do comportamento humano combinando com o vasto aumento da tecnologia em meados e final do século XX” (Rotello, 1997, pp 48-55).
A pandemia de Aids, ao se instaurar na sociedade contemporânea, não constitui uma questão original. A história das sociedades humanas é marcada pelo surgimento de várias epidemias. Os seres humanos, em suas passagens pela história estiveram sempre em confronto com questões de doenças endêmicas e epidêmicas, sempre lidando com o fenômeno da morte iminente, individual e social.
A. Camargo (1994), relata alguns casos de epidemias que assolaram populações inteiras. Segundo ela, “no final do século XIV a presença da Peste na Ásia, fazendo 25.000 de mortes e propagando-se pela Europa, dizimando um terço de sua população.... Os soldados Europeus, levaram para o Novo Mundo moléstias epidêmicas causando a morte de 19.000.000 de Astecas no final do século XV” (Camargo, 1994, pp 29-31). Outros exemplos são lembrados: a Febre Amarela, a Varíola, a Peste Bubônica e a Tuberculose, esta sendo considerada como a doença do século XIX, a que mais causou mortes no mundo.
Esta mesma perspectiva é partilhada por outros autores como C. Ornellas. No seu trabalho, “O Paciente Excluído” (1997) , analisando a prática asilar no século XIX, mostra como a tuberculose foi uma doença tratada como “doença metáfora”. Para ela, a tuberculose ocupa um lugar de destaque no quadro epidemiológico desse período, bem como compõe as estruturas de representações e fantasias das pessoas. Segundo essa autora, naquele tempo a tuberculose foi considerada como uma doença incurável ou de possibilidades de cura remotas, estando sempre relacionada a uma morte romantizada.
A história da doença no século XIX, diz a autora, “contém e reflete as contradições que se produzem nesse período histórico: o crescimento vertiginoso da economia, produto do capitalismo emergente; o aumento das populações e sua transferência para as cidades; o avanço dos conhecimentos científicos.” ( Ornellas, 1997, p 125). Ornellas faz uma análise interessante dessa fase romântica da tuberculose, dizendo que essa visão romantizada da doença semeou heróis na literatura, no teatro, na música, na poesia.
“E nesse cenário, conturbado mas romântico, do século XIX, que nas artes – na literatura – mais que na ciência – na medicina – a tuberculose vai ser descrita como um símbolo metafórico do próprio século. A evolução lenta, prolongada da doença permitia a ‘criação da história romântica’ que se completava na imagem diáfana, lírica e plena de sentimentos de morte” (Ornellas, 1997, p 126).
Mas, deve ser lembrado o fato de que a tuberculose não foi só a doença dos ricos românticos. Ela foi também a doença dos pobres, dos socialmente excluídos, que eram tratados de modo diferente dos ricos romantizados. A tuberculose se instaurou, assim, iluminando socialmente a representação de uma modernidade configurada em dois lados: os ricos e os pobres, ambos suscetíveis de adoecer, ambos mortais, apesar de seus contextos de vida serem diferentes. Ornellas ( 1997) argumenta que somente a partir da descoberta do agente etiológico da tuberculose, o bacilo de Koch, é que se observa uma mudança nesse cenário. Com essa descoberta termina a romantização da tuberculose para os ricos, quando o “herói e a heroína” perdem seu status, e passam a ser os portadores de uma doença que contagia os que não são portadores. Os ricos passam, também, a causar riscos para os outros. Como diz Ornellas, “o mito perde parte da sua fantasia” ( Ornellas, 1997, p 126).
Uma análise similar a essa é feita por Susan Sontag (1984) . Segundo essa autora, a tuberculose também é uma doença de ricos e de pobres. Quando se trata dos ricos ela é associada a questões do amor inusitado, das paixões avassaladoras que terminam por criar estados febris, rostos pálidos, figuras esguias, talhadas pela “doença do amor.” Quando se trata dos pobres, ela é associada à privação, à falta de alimentação, de agasalhos, de moradias, de aquecimento, de higiene básica.
Pela crueldade dos danos causados à população, a tuberculose foi considerada uma peste da urbanização, da industrialização e das condições sórdidas da vida do novo proletariado. Ornellas diz que “Os testemunhos encontrados na literatura como ‘A Dama das Camélias’ e ‘A Montanha Mágica’, entre tantos outros, podem nos ajudar a compreender o que representou a tuberculose para o homem daquele período” (Ornellas, 1997, p 126). Ao que nos parece, essa romantização se configurou num instrumento ideológico das classes sociais abastadas, como um mecanismo imaginário de negação da possibilidade da condição humana dessa classe ser alcançada por uma doença tão vil.
Nessa perspectiva, a experiência da Aids pode ainda ser entendida pela analogia com outra epidemia que assolou as populações no final do século passado. Trata-se da Sífilis, também conhecida como “Lues”, uma doença venérea que marcou profundamente a vida das pessoas desde o século XIX. Essa doença não tem como característica principal a mortalidade, porém se destaca pelos seus efeitos permanentes e sua reprodução através de gerações. É transmitida pela relação sexual e o seu agente transmissor permanece no sangue da pessoa infectada por muito tempo, podendo se manifestar pelo sistema genético. Seus sintomas são discretas lesões (pequenas feridas) nas genitálias masculina e feminina. Sendo indolor, manifesta-se num espaço de trinta dias após a relação sexual, desaparecendo um mês depois. É diagnosticada através de um exame de sangue (sorologia) e o seu agente vetor é uma bactéria “Treponema pallidum.” O exame de sangue, em algumas pessoas, pode dar positivo (em concentração muito baixa) por toda a vida, mesmo depois da cura completa .
Numa breve abordagem sobre essa doença, sem aprofundamentos em sua etiologia, mas apenas para compará-la com a Aids, buscamos referência no trabalho de Sérgio Carrara (1994), que desenvolveu pesquisa analisando a história social da luta contra as doenças venéreas no Brasil. Segundo este autor, a partir do perfil adquirido no final do século XIX, a sífilis se oferece, entre as doenças venéreas, como um símile ou ponto de partida à comparação quase perfeita para a Aids.
“Como a Aids hoje, a sífilis envolveu representações sociais muito amplas, que incidiram sobre os mesmos pontos: a sexualidade ( em especial os comportamentos sexuais considerados excessivos, desviantes, promíscuos); o medo do contágio e da contaminação: a decadência social, ou a possibilidade de uma morte coletiva. Também como a Aids, a sífilis trouxe à tona graves questões institucionais relativas aos limites das intervenções médicas, legal e moral ou educativa no combate a uma doença” ( Carrara, 1994, p. 273-4).
A análise desse autor é significativa no sentido de que estimula o debate no trato das questões da intimidade, mostrando que em determinadas realidades sociais a intimidade passa a ser discutida abertamente na esfera pública. Torna-se um assunto gerenciado pela coletividade. Por conseguinte, mesmo que determinados tipos de doenças afetem apenas pessoalmente, por serem decorrentes de práticas individuais e íntimas, ligadas à sexualidade, a esfera pública termina se apropriando da questão: impondo modelos e normas, dando outros rumos ao tema. Isso pode ser comprovado nos modos como o Estado e a medicina se organizaram, no século passado, para tratar dessa doença, localizando os grupos de transmissores e desenvolvendo campanhas de prevenção.
Sendo a Aids doença que foi diagnosticada preferencialmente como “uma doença da prática sexual,” por isso prática inter-relacional, sua analogia com a sífilis adquire pertinência. A referência à sexualidade funciona como ponto de ligação entre esses dois fenômenos, distantes no tempo, porém análogos na sua etiologia e nos efeitos culturais.
Avançando um pouco mais no trabalho de Carrara, pinçamos alguns aspectos que consideramos pertinentes para mostrar as analogias entre o contexto social histórico da Aids e o da sífilis. O autor analisa o período da sífilis sob duas perspectivas: de um lado as ações sanitárias do Estado para deter a epidemia configuradas no modelo do regulamentarismo, de outro, as ações da religião, no modelo do abolicionismo. Esses dois modelos representaram duas instâncias de poder devidamente instituídas: pelo lado do Estado, para regulamentar a prostituição e, pelo lado da Religião, para combater a prostituição.
O regulamentarismo foi um modelo francês trazido para o Brasil, adotado na primeira metade do século XIX para alguns fins: combater a libertinagem, proteger a moral das famílias e moralizar o espaço público. O modelo abolicionista surgiu no Brasil no mesmo período, originado dos meios protestantes ingleses. Compunha-se de um conjunto de idéias e de propostas diferentes do regulamentarismo. Em muitos aspectos diferia totalmente deste último, revelando críticas duras à ineficácia dos regulamentos contra a prostituição e de reconhecimento da prostituição como profissão. O que o abolicionismo propunha era a radicalização da institucionalização de todos os prostíbulos, que estariam favorecendo o vício da prostituição dando origem às doenças venéreas (Carrara, 1994).
Assim, os dois movimentos se instituíram de modos diferentes e em instâncias de poder diferentes: Estado e Religião. Os regulamentaristas, como nos mostra Carrara (1994), viam os homens de modo diferente das mulheres, pois os mesmos eram dotados de um impulso sexual irreprimível, que se não fosse dirigido para as prostitutas, acabaria atingindo as mulheres “respeitáveis”. Nesse caso era, a “prostituição vista como o mal necessário”. Os abolicionistas, por seu lado viam os homens com a mesma capacidade das mulheres de controlar os seus impulsos sexuais, isto é, “quando se reconhecia nelas a existência de tais impulsos”. Logo, deveriam existir as mesmas regras morais para as duas representações de gênero, masculino e feminino (Carrara, 1994, p 278-9).
Os modelos, pois, vinham gestados em propostas distintas, cada qual trazendo no seu bojo conteúdos de sustentações ideológicas diferentes. Segundo o autor, o regulamentarismo constava de um tipo de intervenção legal ou jurídico-punitiva; em contraposição, o abolicionismo constava de uma intervenção pedagógico-disciplinar, ou moralizadora e educativa.
A comparação entre a Aids e a Sífilis, feita por Carrara na fase preliminar da sua pesquisa, aponta para dois pólos de aproximação entre as duas doenças. O primeiro é o da sexualidade e do conflito entre duas morais: uma científica e a outra laica. Assim, as duas representações são vinculadas uma à figura marginal da mulher, e a outra, às práticas homossexuais masculinas. Em ambas as práticas, para se atuar eficazmente no campo da prevenção, se requereu um discurso público dos comportamentos sexuais (no caso da Aids não apenas esses), fortemente estigmatizados. O segundo, é o de que tanto num tipo de infecção, a sífilis, quanto no outro, a Aids, o portador foi sempre excluído do convívio social, construindo-se um círculo invisível em torno desses doentes. A intervenção moral disciplinar, procurava fazer com que os sãos se afastassem dos locais perigosos ou dos “focos da infecção”, de modo a tornar eficazes os dispositivos de controle sociais.
O que faz a significativa diferença entre as duas epidemias é a resposta dada pela sociedade civil frente à nova doença. A luta contra a Aids encontra suporte em grupos organizados como os Grupos Gays, as Organizações de Base Comunitária (EUA), as ONGs, o Movimento Feminista e outras representações de grupos organizados em defesa da vida como o Movimento Ecológico. Estes movimentos vêm, ao longo dessas duas últimas décadas, interagindo com as populações de pessoas portadoras, fazendo pressão, em nível mundial, junto ao poder público e privado, requerendo para os atingidos toda a assistência necessária: atendimento médico-hospitalar, medicamentos, reinserção nos campos de trabalho, reivindicação de assessoria jurídica e outras tantas necessidades.
Assim, Aids e Sífilis se aproximam por serem ambas transmitidas pela relação sexual, pelo desvelar da intimidade, apresentando de início, uma categoria de atores responsáveis pela transmissão com perfis próximos. Na sífilis, são as prostitutas e, na Aids, os homens homossexuais. A aproximação dos perfis implica dizer que requerem ações dirigidas do poder público para seu tratamento e prevenção; que os indivíduos incorrem em estigma e exclusão; que as infecções são transmissíveis pelo sangue e, finalmente, porque os atingidos são objetos das intervenções de duas instâncias de poder na sociedade: o Estado e a Religião. Mas, essas aproximações não são significativas para pôr as duas doenças em pé de igualdade. Fica a Aids em condição de superioridade, em nível de periculosidade, perante a Sífilis porque ela é letal, porque até hoje ainda não se encontrou a sua cura, porque ressignifica outras doenças como o câncer, a tuberculose, e a hepatite B e C, além de outras infecções oportunistas (diarréia, herpes, toxoplasmose).
Os contextos social e histórico de cada sociedade são permeados de lutas contra as doenças. É notório em tudo isso que a condição da vida humana é determinada pela realidade sociocultural, econômica e política de cada época. Essa constatação reforça a importância sociológica do fenômeno da Aids, o seu surgimento como resultado das contingências da vida cotidiana, como objetivamos no nosso trabalho. A epidemia de Aids tem capacidade surpreendente de mobilização global da vida e das questões sociais, da ciência, da tecnologia, da cultura, da política e da economia. Favoreceu aos grupos emergentes se expressarem e interferirem na ordem vigente, a exemplo da medicina – na relação médico/paciente. Segundo Camargo Jr. (1994), a Aids tornou-se um poderoso holofote iluminando tensões subterrâneas negadas em nossas sociedades, algumas internas à própria medicina, expondo fantasias mais ou menos ocultas a respeito de vários tabus da nossa cultura. Isso porque, na atualidade, a relação médico/paciente, no que tange ao tratamento do HIV/Aids, tem mudado cada vez mais. Sendo assim, a emergência da epidemia foi capaz de (re)colocar as relações humanas na sociedade sob outro prisma, impondo a superação das fronteiras socioculturais “normalizadas”, que regiam as condutas sexuais.
2- Registros Simbólicos Identitários
No espaço de discussão das ciências sociais, duas formas de abordagem da identidade têm relevância para nosso estudo: a psicodinâmica e a interacionista. A primeira surge com os estudos de Freud a respeito das identificações feitas pela criança, por meio das quais passa a assimilar sinais e significações das pessoas e dos objetos externos na construção de suas representações identitárias (Freud, 1996), (Nasio, 1996), (Garcia-Rosa, 1988). A segunda abordagem, a interacionista, particularmente a teoria do interacionismo simbólico, surgiu a partir da teoria pragmática do “eu” discutida por W. James, em finais do sécu1o XIX (1892), e G. Mead no começo do século XX (1934), nos Estados Unidos (Dicionário do Pensamento Social do Século XX, 1996).
A abordagem psicodinâmica tradicional enfatiza o cerne de uma estrutura psíquica como sendo base de uma identidade dinâmica, que seria dada pela capacidade do sujeito de se apresentar como movimento pulsional, desde que integra as mudanças contrastantes ocorridas nos planos psíquicos e históricos. Assim, a identidade como estrutura egóica não sofreria nenhuma descontinuidade, desde respeitasse a centralidade do sujeito. Por seu lado, a abordagem interacionista da identidade considera o “eu” como uma instância identitária flexível, definida não pela estrutura psíquica, mas pelo sistema de interações sociais, permitindo aos indivíduos ponderar de forma reflexiva através da comunicação e da linguagem, estabelecidos através de outro ator social. O que particulariza essa teoria é a concepção da sociedade como uma entidade composta por indivíduos e grupos que, buscam partilhar sentidos, compreensões e expectativas comuns, sendo esta partilha de hábitos, normas etc, a base da identidade individual. Essas idéias interacionadas encontram importante apoio em Goffman (1975) e no seu projeto dramatúrgico.
Na verdade o termo identidade não se define de um modo único, restrito a certos paradigmas ou conceitos uniformes. Segundo o Dicionário do Pensamento Social do século XX (1996), o termo “identidade deriva da raiz latina idem, que implica igualdade e continuidade. Esta palavra tem uma longa história filosófica que examina a permanência em meio a mudança e a unidade em meio a diversidade” (Dicionário do Pensamento social do Século XX, 1996, pp 369-70). Considerando a significação do tema da identidade para a compreensão do nosso objeto de estudo, tentaremos fazer uma elaboração teórica do conceito de identidade que dê conta de certas demandas narcísicas. Isto é, que integre os mecanismos identitários como práticas elaboradas a partir do confronto do sujeito com o outro, confronto que não somente viabiliza apenas trocas de recursos culturais mas, também, de trocas simbólicas, como aparece, por exemplo, no conceito de habitus de Bourdieu (1994).
Para Ciampa (1988) a identidade é uma totalidade. Uma totalidade que é contraditória, porque ao mesmo tempo é múltipla e mutável: “...o ser é uma unidade de contrários que é uno na multiplicidade e na mudança.” Para ele, “Identidade é diferença e igualdade” (Ciampa, 1988, pp 61-2), é qualidade de um processo pelo qual os indivíduos vão sucessivamente, se diferenciando e se igualando, de acordo com suas inserções nos grupos sociais e campos culturais.
Lasch (1990) apoiando-se na psicanálise, define identidade como uma dinâmica cultural particular. A identidade possui um significado mutante: “O significado mutante de ‘identidade’ ilumina o vínculo entre as percepções mutantes do eu e as percepções mutantes do mundo exterior.” (Lasch, 1990, pp 23-4). A identidade deixa de ser um referencial uniforme na auto-identificação passando a ser uma noção flexível que os indivíduos começam a ter de si mesmos, de suas próprias auto-imagens, tomando como referência a dimensão do outro (ou outros).
A identidade pessoal não se define numa única dimensão, como pista de mão única. Segundo Lehmann-Carpzov (1994), “Para a psicologia, o conceito de identidade pessoal é construído mediante articulação do sentimento que se tem da imagem do próprio corpo em sua existência física e daquilo que se chama o produto dos papéis que o indivíduo assume no seu desempenho social.” (Lehmann-Carpzov, 1994, p 124).
A identidade pessoal só se define na concepção do auto-conhecimento, da representação do eu com referência à exterioridade. A imagem afetiva que se constrói do corpo dá uma primeira noção dessa identidade no plano da interioridade, e uma segunda noção seria formada pelos atributos sociais ofertados pela exterioridade: o biotipo, a nacionalidade, situação civil, entre outros. Segundo esta autora, “A identidade pessoal assim considerada surge concomitantemente como um correlato do corpo e dos estímulos físicos dele provenientes, bem como resulta da condensação dos papéis do indivíduo na sua interação social.” (Lehmann-Carpzov, 1994, p. 125). Portanto, a identidade pessoal é uma representação individual formada de um lado na dimensão da subjetividade e autenticidade do sujeito, de outro no confronto com as condições sócio-históricas como o demonstrou conscientimente Castoriadis (1995).
Segundo Burity (1997), as identidades não estão nunca acabadas, pois:
“Elas estão em falta desde o início, elas são falta constitutiva, falta que precisa ser preenchida, mas nunca encontra o ponto final de equilíbrio, pois o nome da falta é o desejo do Outro, que segundo a perspectiva lacaniana, é insaciável, inalcansável – não tanto por sua sublimidade, mas porque o Outro também, não é o ser em plenitude e ser desejante” (Burity, 1997, p 5).
No nosso parecer, identidade social pode ser conceituada como um contínuo da identidade pessoal, já que a identidade pessoal se define na atividade relacional e interativa. A identidade social é um desdobramento da identidade pessoal, visto que em cada forma de interação social ela se representa de modos diferentes. Segundo Ciampa, nós nos representamos a nós mesmos nos grupos onde nos inserimos, de forma que “estabelece-se uma intrincada rede de representações que permeia todas as relações onde cada identidade reflete outra identidade, desaparecendo qualquer possibilidade de se estabelecer um fundamento originário para cada uma delas” (Ciampa, 1988, p. 67).
Os desdobramentos da identidade ocorrem em configurações simbólicas múltiplas. Ciampa advoga que “é do contexto social em que o homem vive que decorrem as suas determinações e, consequentemente, emergem as possibilidades ou impossibilidades, os modos e as alternativas de identidade” (Ciampa, 1988, p 72).
Por sua vez, Lehmann-Carpzov (1994) sustenta que a identidade pessoal e a identidade social se complementam mutuamente. “No plano pessoal a identidade é a consciência da ‘mesmidade’ e no plano social, ela é o reconhecimento da diferença, pois as construções das imagens com que os sujeitos e povos se percebem passam pelo emaranhado de suas culturas, nos pontos de interseção com suas vidas individuais” (Lehmann-Carpzov,1994, p. 124). Através de autores que não são comumente lembrados nos estudos sociológicos, mesmo, assim, que a problemática sociológica entre indivíduo e sociedade que para alguns faria a diferença central entre a teoria do fato social de Durkheim e a teoria da ação social de Weber, apresenta uma dimensão ampla, que supera a preocupação meramente sociológica.
No nosso trabalho buscamos encontrar outros nexos no trato da identidade que dêem conta das suas repercussões políticas. Um desses nexos, se constitui no fato de que a questão da identidade incorre na compreensão da necessidade de um projeto político representacional, a partir do qual as identidades se confrontam e estabelecem, ou não, relações interativas. Isto implica dizer que a formulação de uma política identitária do homem na sociedade assim como a realização de projetos políticos coletivos e plurais necessita vivência democrática. Assim, Ciampa (1988) chama a nossa atenção para dois fatores que devem ser considerados como inviabilizadores num projeto político de identidades. O primeiro diz respeito ao primado da autoridade social sobre a autonomia individual. O segundo, são as representações identitárias já estabelecidas, que muitas vezes aparecem como obstáculos às mudanças sociais e ao reconhecimento das novas representações identitárias, visto que “identidade é um movimento, é desenvolvimento do concreto. Identidade é metamorfose. É sermos o Um e um Outro, para chegarmos a ser um numa infindável transformação (Ciampa, 1988, p.74).
Burity por seu lado referenda a interpretação de Ciampa. Segundo este autor, “toda identidade é política” e “...toda identidade é politicamente ativa”... “A afirmação ou o surgimento de toda identidade e porque referida afirmação consiste em traçar uma fronteira que separa o sou/somos do que não sou/somos, o campo de constituição das identidades é o campo da política”. (Burity, 1997, p. 3). A questão de um projeto político das identidades está presente, dentre outras coisas, na demarcação dos territórios, onde elas se representam ou desejam se representar. Para Burity (op. cit.) “Dizer que a política está na raiz do surgimento e processo de toda identidade esbarra no fato de que muitas identidades se afirmam como apolíticas ou mesmo anti-políticas e na descoberta mais recente de que existem recessos, reentrâncias no social que se quer que estejam ao abrigo da política (Burity, 1997 pp 4-5). No exercício desse projeto político, as identidades se expressam numa dimensão de instituintes, ao se representarem, ao interferirem na ordem já estabelecida. Burity, diz que “...o político é um nome da dimensão de toda prática e identidade,” “...a política diz respeito à explicitação de uma lógica de ação coletiva que demanda a definição de programas e projetos e que implica na institucionalização de práticas ou normas de alcance coletivo (nos limites universalmente aplicáveis)”(Burity, 1997 p. 5).
A experiência da Aids forçou as identidades já instituídas a se reinstituírem. As pessoas portadoras de HIV (soropositivas), ou pessoas doentes de Aids, necessitam buscar novas identidades para viabilizarem suas reinserções nas novas condições de vida. O diagnóstico médico desencadeia uma crise nas identidades. Tal crise é decorrente das mutações oriundas da condição física em que é posta a pessoa infectada (doenças oportunistas), e das mudanças nas práticas vivenciais tais como quebra de laços afetivos (vida conjugal, familiar, amizades). As mudanças atingem espaços sociais freqüentados anteriormente, passando-se a percorrer outros lugares nunca cogitados antes como hospitais, ambulatórios, consultórios médicos, laboratórios e consultórios psicológicos. As mudanças refazem hábitos cotidianos: a alimentação é sujeita a dieta, medicamentos em horários combinados tornam-se rotinas, práticas de sexo, álcool, tabaco são disciplinadas. Uma nova linguagem é inventada como as de conhecer e decorar os nomes dos medicamentos, ou se inteirar de termos da ciência médica: sistema imunitário, CD4, carga viral, janela imunológica, cópias de vírus, célula T auxiliar, protease, infecção oportunista, Teste ELIZA, Teste Western Blot de confirmação, soroprevalência, transcriptase reversa, entre tantos outros. Assim, todo esse novo contexto sociocultural instaura a diferença na vida antes/depois do HIV/Aids, e desencadeia a crise nas identidades, impondo a redefinição das mesmas. Novas perspectivas de vida são então criadas.
Entendemos que tratar de redefinição das identidades dos portadores remete à discussão de crise de identidade, visto que o ato de redefinir implica em que houve conflitos e incertezas em relação às crenças anteriores, às escolhas já feitas precedentemente. Pelo fato das identidades serem instâncias mutantes, elas estabelecem novas definições. Segundo o Novo Dicionário do Pensamento Social Século XX.
“....falamos de “crise” em relação a sujeitos, a uma vida ou uma forma de vida, a um sistema ou uma “esfera” de ação. As crises decidem se uma coisa perdura ou não. O caso paradigmático de crise é a crise de vida, na qual, se levada ao extremo está se tratando de uma questão de vida ou morte.” “A crise leva aos confrontos com as questões básicas: ser ou não ser, fazer ou não fazer, e nascem questões objetivas, mesmo, às vezes, o indivíduo não, possuindo numa primeira instância, o conhecimento de onde ele se originou”. “Elas também sempre afetam a auto-compreensão e a auto-definição de agentes, sistemas ou esferas, uma vez que sempre afetam sua ‘identidade’, isto é, uma vida ou situação de vida como um todo” (Dicionário do Pensamento social do Século XX, pp 156-7).
As crises, são sempre resultantes de alguma situação externa, cultural, mas elas também são do interior, dos processos psíquicos. O campo onde elas se representam é na exterioridade, embora sejam ressignificadas singularmente pelos indivíduos. Segundo F. Bollnow (1974), a crise evolui do interior de modo imprescindível: “na crise, sempre se trata de um distúrbio no processo normal de vida; essa perturbação se destaca pelo caráter repentino do seu aparecimento e por sua intensidade fora do comum; na crise a continuidade de vida aparece totalmente ameaçada e pelo trânsito através da crise se estabelece por fim um novo estado de equilíbrio” (Bollnow, 1974 pp 42-3).
Para Ballnow, a crise possui uma significação: ela é purificadora. Na crise, o indivíduo procura livrar-se dos problemas que o acometem, e ressurgir novo. A crise é também uma decisão. O indivíduo deverá optar entre possibilidades, de modo que nessa opção ele recupere o equilíbrio biopsíquico ameaçado e se sinta restabelecido e pronto para retomar sua vida.
Nessas interpretações, encontramos os precedentes teóricos para a discussão das identidades no nosso objeto de trabalho. No modo como as identidades das pessoas soropositivas e com Aids se representam no gênero, na exclusão, nas políticas públicas governamentais, na ação das ONG/Aids, como tentaremos mostrar posteriormente na análise de dados estão na dependência deste jogo de trocas de sinais e símbolos que começam as representações sociais e individuais.
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